Era vinte de dezembro de mil novecentos e
setenta e dois. Me vi no Campo Grande, no
meio de uma multidão. Sem razão aparente as pessoas começam a correr para o
Corredor da Vitória. O que aconteceu, ninguém soube.
- Corre,
corre, é a policia, gritavam.
Eu não tinha razões para correr, não fora o
aparecimento repentino de tanques,
tratores e outros carros militares. Vinham destruindo tudo. Mas, quando de fato
comecei a correr já se tinham cercado
tudo com arame farpado. Enormes redes de arame. Uma armadilha. Soldados de
todas as fardas cercavam o resto. Eu vencia as cercas de arame, mas outras
surgiam à minha frente, indefinidamente. Corri desorientado, muito e muito,
como se estivesse no escuro. Muitos, muitos dias, e ao abrir os olhos estava no
Bonfim, o domingo de Bonfim. Barracas tocavam músicas, no samba de roda,
mulatas se sacudiam, na roda de capoeira Caiçara rodopiava o rabo de arraia
para impedir a cabeçada de Bom Cabelo.
Como mágica, cercas de arame, soldados, bombas estourando, gaz chiando, gente
correndo, mulheres gemendo, uma criança cai no tacho fervente de acaragé. Uma
batalha como se fosse a final. Por que fazem guerra, os homens?
Quantos minutos, quantas horas as escaramuças?
Coalhada ficou a Baixa do Bonfim. Corpos, queimados, mutilados, tecidos,
roupas, pedaços de madeira, fogões,
geladeiras, garrafas, espetos, churraqueiras, pneus fumegando, ferros de engomar,
rádios e radiolas, camas, mesas, cadeiras, arlequins, pierrôs e colombina saindo com o sorriso da dor.
Pouco a pouco, como caracóis saídos da concha,
vinham chegando. E como formigas avarentas pegavam do butim o que podiam e já
entre si tentavam vender o que traziam às costas, na cabeça, nas mãos. Acolá
tentam arrancar o dente de ouro de um que jaz semi-morto. Outro foi tirar o
relógio de um defunto que acordou e deu um tapona no lalau. Os soldados se
misturaram à turba para saquear o que ainda tinha alguma serventia. Como o
primeiro de abril de 1964. Corri da faculdade cercada de tanques de guerra, mas
soldados me pararam e tomaram os cruzeiros guardados para pegar ônibus da
liberdade que partia do Campo Grande. Bela maneira de combater a corrupção. Hoje,
os togados tomaram a si o combate à corrupção, mas se enchem de sinecuras com auxílio isto,
auxilio aquilo, nepotismo e todas a benesses que o poder proporciona.