Levou muito tempo discutindo sobre seu nome.
Conta-lhe a história e origem dos nomes.
Chamava-se Bernadette, passara a
ser conhecida como maman Bernadette, protetora de estudantes estrangeiros.
Conseguira boas colocações aos que ali passaram. Davi Verner, havia-lhe
indicado esta mecenas. Havia passado por suas mãos, mas não tivera tempo de
burilar o ator que havia dentro dele, nem arranjar-lhe um contato com o grand
monde.
Ficou
deveras impressionado com a velha senhora. Um turbilhão. Quase nada
entendeu, mas assim mesmo conversaram.
Queria fazer jornalismo, sobreviver com
ele. Deixar de lado o direito iniciado
na Bahia. Talvez, uma porta pro cinema,
sua verdadeira paixão. Elle bavardait.
Prometeu apresentá-lo a ilustres
personagens, dando-lhe oportunidade de fazer artigos pra publicar no Brasil. E de logo ficou
acertado que deveria levá-la a um jantar, à
la campagne. Um jantar e a vernissage do pintor amigo, anfitrião. Je vous donne rendez-vous pour jeudi, trois heures. Disse e estendeu-lhe a
mão. Bela maneira de mandá-lo embora.
Quinta-feira.
Sim. Quinta-feira, maman Bernadette marcou rendez-vous.
Meu Deus, o que poderia acontecer? Uma
exposição de pintura, um jantar em casa de um amigo, à la campagne. Seu
conhecimento de francês não chegava a entender o real sentido da palavra rendez-vous. No Brasil rendez-vous é lugar de orgia e
libertinagem. Brega. O homem sempre teve o hábito de se apropriar de um termo
de outra língua ou mesmo da mesma língua e modificar inteiramente o seu
sentido. Os linguistas chamam isto de mudança semântica. Rendez-Vous virou nas bocas tupiniquins, simplesmente brega, lugar de encontros pouco recomendáveis.
Um dia, com Claudio, no Quatier Latin, perto da Coupole, entram cinco brasileiros, chamava-se embaixadas, viagens de estudantes
em fim de curso. Com Claudio quase, se falavam em francês, por isto o grupo não
percebeu serem brasileiros. Perguntavam-se.
E agora, como é garçon em francês? Cláudio chama o garçon. Aturdidos, vejam,
garçon é o mesmo que em português. Isto não é colonialismo? Perde-se até a noção da língua. Mas voltemos à
velha, ainda que esta história tenha acontecido realmente, não poderá
servir de pretexto a digressões político-filosóficas, em detrimento da verdadeira
história de Maman Bernadette ou de seus coadjuvantes, porque parece só existir
protagonista, desde que os gregos o inventaram, nos livros, nos romances, nas
novelas, na real, na vida de cada dia,
meros coadjuvantes somos, quão
diminutos diante da portentosa e
brava natureza. Imaginou lindas
francesas em orgia no passeio à la
campagne, Jeudi trois heures, não obstante se mostrasse aquela velha
senhora de uma religiosidade a toda prova, com terço de ouro nas mãos que ela
parecia dedilhar mecanicamente, balbuciando aqui e acolá palavras da Ave Maria,
do credo, da jaculatória, do Pai Nosso
denunciando sua devoção e fidelidade à recomendação de Maria quando,
dizem, entregou-o a São Domingos como
arma poderosa contra as tentações do demônio e conversão dos hereges.
Vestidinho composto, negro como as roupas das portuguesas, mas de corte
elegante como são as roupas dos franceses, mestres do vestuário e da
perfumaria. Semiparaplégica, andava com
dificuldade com o auxilio de muletas. Um rostinho quadriredondo, como costumam ter as francesas.
Tipo mignon, que se pode traduzir como pequena e bela. Uma
mulher feia não é mignon, é petitte. Precisa, o francês, talvez mais que o português. O partitivo, por exemplo, evidências da precisão. Não se
bebe água, bebe-se da água, não toda água do mundo. Boire de
l´eau. Talvez, por isto o positivismo francês. Não podia imaginar aquele
rosto encostado ao meu, aqueles lábios
finos, quase uma lombriga, tocando os meus. Nas manhãs calorentas ou chuvosas,
mães acordavam os filhos, caneca de óleo
de rícino na mãos. Segurar uma colher, não vomitar. Expulsar os vermes. A saia
saía botando vermes de todos os tamanhos. As vezes iam saindo dois, três, e a gente
era obrigado a puxá-las como macarrão puxado pelo filete do escorredor. Quando
saído do sertão, viu o macarrão pela primeira vez, lembrou-se dos vermes saídos
do fiofó. Estão rindo de quê? Nojo? Que
culpa tenho de que não tenham vivido a vida? Não tenham nada par contar? Só mentiras. Conquistas nunca realizadas?
Posso voltar a Maman Bernadette? Seu
hálito exalava um cheiro apodrecido, mas
simpática no seu sorriso. Carecia dela. Ajudar nos meus sonhos. Errado,
usar as pessoas. Prostituição, corrupção.
Muitos pensam que só se corrompe por dinheiro. Poder-se-á ser traído pelos próprios
pensamentos. Alguém também estará tentando usar você. Vence o melhor, como na
natureza. O mais preparado. Eu, o mais fraco.
A educação franciscano-jesuítica
impedia avançar sobre as barreiras da moral. Neanmoins, deixemos que o barco da vida nos conduza. Sem atropelo,
sem premeditação. Seja o que Deus quiser. Mundacho torto, como dizia o bom frei
Teodoro nos corredores do Convento da Piedade da Bahia. O mundo é mesmo torto,
mas ainda assim, vale. Anos depois ouvirá alguém dizer: Oh mundão, não acaba não, mundão.
Quinta-feira,
do português, como quis Martinho de Braga. Dia de Júpiter. Jeudi. La mama o recebe esplendorosa em seu tailleur noir e manteau
Cardin. Não era uma paraplegia que a atormentasse, mas, muito mais uma
espondilite que a mantinha curvada sobre o próprio corpo, com certa elegância,
entretanto. As muletas eram-lhe útil, certo que não se movia sem elas. Pena que
morasse no quinto andar. Posso dizer-te
que desceram a escada? Ou pegaram o
elevador? Ela, pelo elevador, sem dúvida. Engenhoca em metais, barulhenta,
cujas portas gradeadas se abriam encolhendo como sanfona, usado só na subida,
descer pela escada, medida de economia. Que importam estes detalhes? Num
realista isto é importante. Tudo é importante. Mas se se disser que tudo não
passa de um sonho? Como se lembrar inteiramente de um sonho? Perdem-se os contornos, como se fora num
lusco-fusco a caminho da noite. Como se se
tivesse nos olhos uma espessa membrana, que mau deixa entrever a massa disforme
das coisas. Tempo é a noite da memória. Realidade vira sonho perdido na
escuridão, mesmo que se tente puxá-la pra perto. Se vêm, chega em pedaços
disformes, sem cronologia, truncados um nos outros, como num quadro abstrato,
religar impossível.
Me
vi, se viram no táxi. Ela, a mãezinha bavardait
como um papagaio, como a nega do leite, diriam avoengos. Vovô. Batia colher de pau em minha cabeça,
que eu falasse sem gaguejar. Falar não
me é mais constrangedor, enjoa, mais ainda quando se entende o que se diz e o que se não diz. Toda palavra tem um sentido, o que tu vês e o
que não vês. La mère falava. Com a cabeça, ora com os olhos acenava-lhe, apenas. Por que mentir? Não
estava entendendo muita coisa. Falam depressa os franceses, pouco se lhes
importam que estejamos ou não entendendo. Nós nos esforçamos pra sermos entendidos, até tentamos falar com o sotaque estrangeiro. Parecer chique. Orgulhamo-nos de falar inglês, mas
não temos vergonha de assassinar o português. Mentalidade de colonizado, de
escravo. Não o francês. Vive cem anos em um país e continua falando com
sotaque, mesmo que pareça amar este país
mais do o seu próprio, como Pierre Verger, o babalaô Fatumbi
que renasceu na Bahia pela graça de Ifá.
Cedo
chegaram. O taxi os deixou à porta do castelo. Era um destes castelos entre
tantos existentes na França, de construção medieval. Acostumados à taipa e
telha vã dos musseques de Salvador da Bahia seus olhos cresceram, como os de um
gato na escuridão. Recebidos por Monsieur Grillon, um senhor circunspecto, mas simpático que os levou a
uma sala ao rés-do-chão na ala esquerda do prédio, onde estavam expostos seus
quadros em pintura abstrata. Nada
entendia de pintura, muito menos abstrata. Poderia se enfeitiçar
pelas cores, porque em verdade a cor é tudo na vida. Se tudo fosse visto em
preto e branco a vida seria muito monótona. As cores tornam a vida doce e
agradável. Quando bate a seca no sertão, esturricado, ocre e chato o chão. Também
o gelo virado lama, o branco é cinza, é preto, desolação. Flocos de neve caindo
à noitinha. Paris, mais que uma festa. Como
tanajuras caindo nas tardes do sertão. Não só ele, abestalhados, todos ficam
com a neve. Crianças e adultos brincam, batalhas no gelo. Um punhado de neve na cara.
Sorrisos largos. No Ceará não tem disto não. No degelo, o coração gela. Um
café, um chá, um conhaque, suportar o frio. Foi
no degelo, vindos de Maman Bernadette,
ele e Jussiê, ofendidos porque, sem
dinheiro, entraram num bar, esquentar o
frio. Dehors étranger de la merde, berrou o francês com seu hálito azedo
de vinho barato. Uma gorda senhora gloterava como cegonha, mostrando,
despudoradamente, os dentes apodrecidos pelas cebolas malcozidas de sua sopa.
Continua no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
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