terça-feira, 11 de outubro de 2016

EM BUSCA DE UM TEMA OU UM TEMA À PROCURA DE UM AUTOR


















Não se sabe ou não me lembro bem como tudo começou. Lembro-me agora de estar numa ampla sala de um tribunal com alguns juízes ou desembargadores que se reuniriam pra julgar um processo. Era um caso rumoroso, do qual a cidade toda falava. Juro que não me recordo qual a questão, mas prometo que se me lembrar, antes de terminar este relato, eu o direi, pois, embora não seja fominha de realismo, como pretendem os jovens escritores, há certas curiosidades que o leitor gostaria de saber e não se pode escrever sem se satisfazer um mínimo ao leitor,  pena de ser jogado no lixo, na pubele, como dizem os franceses, (eles escrevem poubele), antes mesmo de se vencer o primeiro capítulo. O certo é que o tribunal se instalava em uma ala de um prédio adonde funcionava também um clube chique, de elite. O desembargador sorteado relator do processo fazia parte da oposição e se esperava que se julgasse a contenda contra os interesses do governo, pois muitos já estavam propensos a julgar com a oposição, a despeito de não se poder contar com maioria certa. Conhecia os desembargadores. Estava lá o Lombroso, professor de Direito, Jacaré, de Direito Processual Penal e  Branquinho. Ah, o Branquinho, foi o primeiro desembargador, de quem não fui aluno, que tive coragem de me aproximar profissionalmente. Obra do genro, meu colega de sala.  Jovens advogados  em inicio de carreira gostam de trocar ideias. Primeiras vitórias,  peripécias. Eu tive mil ou não sei quantas. Encontrei Renan nos corredores do Forum. Estou com um Habeas-corpus escabroso, tenho de ganhar. Quem é o relator? Branquinho. Branquinho? É meu sogro. Não diga, como faço pa falar com ele? O velho gosta de um uisquinho. Deu-me endereço e data de aniversário. Comprei  um famoso  uísque.  Fui, afoitamente, bater à sua porta. Coragem e determinação. Surpreso, vi que estava só, dei-lhe parabéns e entreguei a garrafa. Uma pequena lembrança.  Assim tive anulado  o processo. Bela iniciação.  O fulano  matara  a mulher, fugindo, processado em revelia, preso anos depois seria julgado, em processo nulo, por que não tivera defesa. Em Riachão do Jacuípe a juíza nomeara-lhe defensor um leigo.  Coitado,  não fez defesa alguma e só faltou pedir a condenação do réu. Anulei o processo manco de defesa, mas não soltei o preso. O desembargador entendeu, e o tribunal concordou, ser possível alguém estar preso com processo nulo. Justiça brasileira. E falam em democracia. Sem justiça não há democracia. Uma vela a Deus outra ao Diabo. Diabo se escreve com letra maiúscula? Boa pergunta, tadim do diabo, nem  letra maiúscula lhe querem dar. Mas eu insisto em escrever com letra maiúscula, afinal Deus e Diabo são tudo igual, já dizia Shakespeare: "O bem e o mal é tudo igual". Mas, voltemos ao nosso relato. Muita gente começou a aparecer e a pressionar os julgadores. Os oposicionistas fantasiados, alguns  até com máscaras por não serem reconhecidos. Enormes, de forma e cores diversas. O  Bumba-meu-boi de Capela. A nega Catirina, nunca se sabia quem era, corria, chicote na mão, atrás da gente. Também a  burrinha a dar  coices e cabriolas,  enquanto o boi chifrava a meninada.
O meu boi morreu
 Vamos enterrar
O dinheiro dele
É  pra nós gastar.

                        Os violões de Emiliano, de Lilinha de Zé Luis,  o pandeiro de Pedro de Zé de Liodoro, o prato e o zabumba, acompanhavam as cantigas. Ás vezes, até a sanfona de Elias do Pé do Morro ou de Vaguinho das Pintadas. Este, migrado pra Brasilia,  virou crente, dizem, e puxa  seu fole agora só par as glórias do Senhor Jesus. Estará seu Jesus de Zé do Martelo  ligando pra suas  sanfonadas?  Mascarados de verdade,  só mesmo em Feira de Santana o micarêta. Vestidos de mulher, mexiam com todos e faziam medo às crianças.  Notre Dame de Paris, gárgulas e quimeras levam-me de volta a Capela, a Feira de Santana. A mula do padre. Sem cabeça, rodeava as casas assombrando mulheres, crianças e velhos. Pois quando se está velho, por se  estar perto da morte, se tem medo de tudo, ou não se tem medo de mais nada. Trotava pelas ruas, relinchando e chorando, ora mula, ora mulher. O corpo lá do padre lhe roubou a paz, agora sofre, até encontrar alguém de coragem para tirar os freios de sua boca,  perder o encanto e voltar a ser mulher. Quem tem coragem? Longe o intento daqueles. Quero dizer, os mascarados do julgamento. Não queriam fazer troça de ninguém, e muito menos fazer medo, queriam apenas não serem reconhecidos.  Os governistas, de cara lisa e com petulância, faziam seu lobby abertamente. Lobby?  Disse? Que  dirão os puristas quando lerem este anedota? Não há  substituto, em português deste anglicismo? Ou americanismo? Sim, os americanos inventaram esta profissão. Lobby:  varanda, vestíbulo, átrio ou adro,  antecâmara,  sala de espera, passou a designar uma pessoa ou um grupo a Influenciar o poder, fazendo aprovar medidas de interesses de alguém ou de uma classe. Sentavam-se no lobby, esperando, espera que é pressão.  A arte de corromper, tão cara aos norte-americanos;  vendem até a própria mãe.  Vamos amenizar, pela felicidade do vernáculo, vamos aportuguesar. Lobe e lobistas, os fazedores do  lobe. Sim. Havia ali lobistas tentando convencer os julgadores a julgar o processo, no interesse do governo. Não, não eram lobistas os oposicionistas. Não tinham dinheiro nem intenção de corromper os julgadores. Limitavam-se a se exibirem, caladas,  nos corredores e salas do prédio, na doce esperança de um julgamento contra o governo. Apelavam apenas aos sentimentos de humanidade,  e não ofereciam mais do que o respeito pelo seu voto. Tímidas pancartas anunciavam. Por um judiciário independente. Ministro nomeado, ministro endividado. Uma era mais afoita que todas: Governador desamarre os cabrestos. Eu me sentia um pato fora d´água.  Ou como um ojé visitado pelos eguns, com seus opás multicoloridos e gigantes. Um ojé, estarrecido e temente da força dos egunguns a evitar, a todo custo, tocar  suas roupas sagradas e meneiando o ixam com cuidado e maestria, par afugentar malefícios e morte. Clube e Tribunal como almas gêmeas, de um se via o outro.  Uma passagem, um túnel de vidro, como de vidro eram as fachadas dos dois, um a outro. A toga enxovalhada era deixada sobre os escrínios e o magistrado, sátiro intogado,  passava ao clube sorver as delícias de Baco e Venus. Trânsito no túnel, nos prédios, empregados portando paneis, documentos,  jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas,  nervosos, à busca de notícias. Suado passa Ataíde, surrado passa o terno eterno, cabeça  inclinada para esquerda,  como se o pescoço fora de lâminas bimetálicas aquecidas, ou sofresse do conatus recendendi de Descartes que jogava sua cabeça  para fora do centro. Uma figura do cinema baiano. Estava, sempre,  em toda parte, em todo evento de arte, principalmente se houvesse um coquetel, onde pudesse se afundar no vinho e comer a 0800 as iguarias oferecidas, economizando  janta e, talvez, o desjejum e almoço. Na cabeça, dizia, vários filmes à procura de um produtor, aliás, esta não era uma particularidade sua,  todos que se metiam a fazer cinema na Bahia alardeavam a mesma coisa. Idéias, argumentos e roteiros não faltam, o que falta é produtor. Não tiveram a mesma sorte ou o mesmo talento que Glauber Rocha. Este, um  cineasta louco que morreu um pouco por fome, um pouco por maltrato. Fez mais fama na Europa que no Brasil. Sua mãe corre até hoje atrás dos governantes na vã tentativa de criar a Casa Glauber, um museu onde pudesse ser exposto tudo o que produziu ou lhe tivesse pertencido ou fora por ele utilizado.  Em vão.  Até a casa onde morou, no Barris, onde a mãe tinha uma pensão, foi demolida, dando lugar a uma clínica, onde os médicos cegam seus pacientes a cada consulta.  Em frente aos dois, a praia, o mar. Imenso, azulverdeazulcinzento. Esbravejante, revolto, de espumas flutuantes, porque era março, dias de Marte. É pau. É pedra. Será verdade mesmo que Xerxes mandara chibatear o mar por ter engolido seu cavalo?  Haveria muito que apanhar pelos pescadores que já engoliu. 


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

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