terça-feira, 29 de novembro de 2016

LA NOCHE TRISTE CHAPECOENSE


La Malinche -  Alfredo Ramos Martinez, 1930





                          A vida, as vezes, invade a arte, hoje, a morte a invadiu. Arte, pensam, imitação da vida. Não é assim, Aristóteles?Doce ilusão. Nem chega aos pés do real. De foice na mão, com seu traje preto, entrou, sem ser percebida, no avião da Chapecoense. Tudo ia bem até as faldas Medellin. Quanta luta para a Sul-Americana. A morte é escuridão, que dirá a caixa? Pane seca? Que alguém precipitou sobre as serras de Medellin  o Bae 146 da Lamia? Vejo que não vivo, durmo. Longa noche triste. A penúltima noite no Vieira. Guerra de travesseiros. Tudo ia ao ar, os padres à loucura. Sem castigo, o amanhã era a partida. La Noche Triste. Junto de sua Malinche teria chorado Cortez a perda da batalha para os astecas. La Malinche,  como muitos traidores, não chorou, porque a traição é própria dos sem lágrimas. Pouco se lhe importa. O trair é um êxtase só para quem trai, interdito aos demais, mesmo que se beneficia.
                  Heróis, onde andarão vocês? Tu, Danilo,  por que  tanto segurar a bola? Zé de Danié, o gato,  lá em Capela. A vitória pode nos levar à derrota. Como Pirro, choremos a vitória. Choremos a morte. A dor une, a alegria separa. A vitória só vem com a derrota.  Teu rival te quer campeão. Querem te ceder atletas, que não sejas rebaixado. O Racing faz homenagem, manifestam-se nas redes. O mundo se dilacera, o povo desunido, chora unido. Política desune, futebol une. Não me vanglorio da morte de ninguém, como vi pela morte do Fidel. Ela nos iguala, faz pensar. Salve Ximena Suárez, Salve Erwin Tumiri, Salve Rafael Henzel, Salve Follmann, Salve Neto, Salve Alan Ruschel vocês podem, sim, nos dizer que gosto tem a vida. Horus que carrega as chaves da vida e da morte vos reservou uma missão. Vão, daqui eu vejo tudo, e digam a quem quer tirar dos outros a vida, digam, vocês, a quem quer de si, tirar a própria vida, o quanto valiosa ela é, mas digam também a todos o quanto pequeninos sois para estarem aí digladiando uns com os outros no lugar de gozarem juntos a vida que lhes dei. Hoje perdoo todos meus inimigos, até tu, Aloisio Leal,  que me derrotastes na flor dos meus anos, derrota que foi vitória, tu não sabes,  também saíste naufragado. Todo vencedor traz uma veste rasgada. Não te vanglories tanto de tua vitória, sempre haverá quem conte a história que não contaste.  Não é, Madame Faure? Venceste-me por um prato de comida.  Estou aqui para contar a história que não é a tua. Se todo vencedor soubesse disto não diria, como Breno, Vae victis, ele próprio depois vencido. Não foi, Camilo?  Assim, vingado está, Didi, pensaste nisto, Quertezer?  KaRa de fome e sorriso nos olhos. Onde estarás agora, Dr. Baiúca, nos braços de Aloisio Leal, no plano celestial? Triste história de uma  justiça subserviente e acovardada. Que justiça que tu fazes para o roto e esmulambado?  Levem-na à ruína. Ressuscitem-na das cinzas.       
                      
                            


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve na livrarias.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O BANQUETE



Anubis - Guardião dos túmulos.








Vários prédios compunham um conjunto de estilo neoclássico alguns, barrocos outros. Pareciam serem todos construídos em estilo barroco, tendo sido remodelados depois.  Vi, em dezessete de julho de mil novecentos e oitenta oito, amplos jardins  separando-os.
Um deles, com vários pavimentos, abrigava uma espécie de cemitério ou panteão. Ornavam-no ciprestes em fileiras, longas, e, árvores diversas,  mangueiras, gameleiras tornando o ambiente tranquilo, mas sombrio e tenebroso. O ar, impuro, exalava cheiro de carne apodrecida. Insetos 
esvoaçavam por sobre mim, como  moscardos, monstros de cem olhos,  perseguindo a bela Io, paixão de Zeus.
Não sei se mais nojento o costume dos parsis, adoradores do fogo,  de não enterrarem seus mortos, preferindo deixá-los em altas torres para serem devorados por abutres. Não querem contaminar a terra. Mazda certamente é um deus moderno e ecológico.
Nos túmulos, bandejas de iguarias: garum (molho de peixe)  puls,  papa de cereais,   fava  ou  queijo, mel e  gema de ovo; bensone, bolo de farinha de trigo, leite, açúcar, manteiga, ovos, raspas de limão, fermento e sal, tinham sido depositadas como oferendas, que seriam oferecidas posteriormente aos convivas. Um túmulo me impressionou sobejamente. Ali jaz uma anciã. Um anjo desce tocando a trombeta do juízo final. Ela se levanta em prece  e num esforço descomunal suspende a laje que a prendera por longos anos e talvez séculos. Não me ocorrera que se tratava do túmulo da mãe de Le  Brun, mestre da escultura funerária.
Era dia de festa. Qual? Não me recordo. Me vi num salão amplo e multi-decorado. Havia uma mesa repleta de bandejas com guloseimas. Doces e iguarias das mais variadas qualidades e outras vinham sendo trazidas por garçons vestidos a rigor.
Mama, a zeladora d´oferendas não deixava que fossem tocadas e mandava as iguarias, que já tivessem cumprido sua função. Seriam saboreadas pelos visitantes.
Ajudava mamãe nesta labuta. Neste dia muita gente havia. Eu me apressava para trazer as bandejas para os convivas. A Multidão me atrapalhava nesta lida. E para não me atrasar, voava de um túmulo a outro, de um prédio a outro, passando por cima dos jardins. E como os prédios eram altos, tive de voar como um mupungu  para que não batesse nos tetos.
De repente me perdi. Não encontrei o prédio principal e já escurecia e precisava voltar ao panteão, queria comer da torta de chocolate vista naquele túmulo preto e branco, de  personalidade, por mim,   não sabida..
Voando, me distrai e dei numa igreja  repleta de gente,  ouvindo uma missa cantada por seminaristas de  batinas pretas e sobrepelizes de  alvura sem par. Missa dita no altar-mór. Fiquei parado, observando as funções, os rituais. Boquiaberto, ainda haviam pessoas religiosas.
O cântico, ali,  talvez  tocasse os presentes.  Um canto gregoriano de uma beleza simples, uníssona e contagiante. Pater noster, qui es in cælis, sanctificétur nomen tuum... Era como se tivesse voltando vários séculos no tempo. Senti como se todos estivessem suspensos no ar. Com a luz mortiça das velas, das lâmpadas elétricas escondidas nas cornijas, ou incrustadas em forma de velas em grandes castiçais ou em lustres pendentes do teto  transmitia uma atmosfera lúgubre, mágica e fantasmagórica, hipnotizava o crente e seu observador.
Andando, observava fiéis em sua oração. O barroco, o altar-mor e capelas laterais, estas, permitiam a cada um fazer  orações aos santos de sua devoção,  ou mesmo conversar baixinho, sem incomodar os demais.
Numa capela, uma mulher loira de olhos azuis, nem tanto loura, mas um pouco moura, segurava uma criança e parecia conversar com alguém atrás de uma cortina. Olhou-me com olhos de basilisco.  Não tens o poder de matar, pensei. Erraram o mais velhos. Inofensivo iguanídeo, não me importo  que tenhas teus olhos de feitiço. Vou para ti, mulher. Segura teu filho, não o deixes chorar.
Vestia um comprido vestido lilás,  à maneira grega, aberto em cada lado, deixando entrever o corpo quando em movimento. Parecia ser padre o homem com quem conversava. Era alto e bonito. Trocavam  furtivos gestos de ternura e suspendiam a criança, brincando. Olhar de ciúmes. Desejo traído pelos olhos. Quem não ama a aventura mesmo que a tema? De medo não me aproximei, mas quem há-de? Fitava-os disfarçadamente. Fingia interesse no altar, ricamente decorado com flores brancas, contrastando com o dourado do templo e o púrpura das cortinas pendentes do teto. Na capela ao lado, uma pequena audiência assistia a um sermão. Um padre hirto, barbudinho, Inspirando simpatia dizia sua homilia. “Considera-te já como morto. E, como se tu mesmo  foras outra  diferente  pessoa viva, põe-te a olhar para teu corpo defunto. Adverte como fica feio, pálido e desfigurado. Alguém de casa lhe cerra os olhos, aperta o queixo, estende os pés, compõe os braços e, amortalhado em um pobre lençol (que é o despojo que leva de todas as coisas deste mundo) o põe na casa sobre um pano negro, com luzes a uma e outra parte. Vêm os ministros da igreja, rezam o responso, tomam em peso o cadáver, que está mui inteiriçado, frio e pesado e com princípios de corrupção, e descem para o meter na tumba, despedindo-se dele os domésticos com algumas lágrimas, que brevemente se enxugam e para o defunto são totalmente inúteis. Caminham à igreja, aonde está prevenida uma cova, e amontoados a um e outro lado dela muitos ossos e muita terra que lança  de si o fartum dos mortos, de que costuma ser cama. Este espaçoso e ameno palácio onde há de morar o novo hospede, até que a trombeta de um Arcanjo o acorde e o mande levantar, para que dê conta e leve o prêmio ou pena do que serviu ou ofendeu a seu criador. Ali deixam cair o cadáver, ossos e terra por colchões, terra e ossos por cobertores. Começam a calçá-lo a golpes de enxada, põem-lhe uma  laje em cima; vão-se os circunstantes, uns a comer e beber, outros a rir ou contar novas, outros a tratar do seu negócio. E daí a poucos dias desapareceu até a memória do tal defunto, e ainda a mulher e filhos o nomeiam poucas vezes, e talvez para o praguejarem, se deixou pouco remédio
 Vês, alma minha, o que é o mundo? Vês o que é o corpo? Pois para que adoras no regalo e comodidade do teu corpo? Para que idolatras na estátua fantástica do mundo? À vista de tão horrendo espetáculo e desengano palpável, não me dirás de que serve desvelar-te por amontoar fazenda com inquietação da tua consciência, por crescer na honra, por sair com teu apetite? Onde está agora tudo que deu prazer e recreação a teus sentidos? Que proveito tirastes da vaidade e da malícia? Como és tão néscio, que com ofensa grave de Deus cativas a tua alma e o teu corpo, e todo o tempo e cuidado se te vai em acomodar, fomentar e defender? Não vês que é pó e bichos, horror e podridão? Não sabes que te não há de pagar esses obséquios senão com tormentos?”



Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.



domingo, 13 de novembro de 2016

O ENTERRO DOS ENVENENADOS















Começava a escurecer quando a caminho do Pelourinho, acompanhar  o enterro de pessoas envenenadas. Cerca de 50, entre jovens, adultos e crianças. Ruas apinhadas, carros, gente. Correm, indo e vindo sobraçando compras. Operários de macacão faziam instalações elétricas, construíam palcos sobre estruturas metálicas, zoeira. Semana de carnaval. Doze de março de dois mil.  Pensei até em ir pela Baixa dos Sapateiros, Não pegar engarrafamento, mas resolvi deixar o carro nos Barris e seguir a pé pela Avenida Sete. Na altura da Praça Castro Alves, que ainda não era totalmente do povo, muita  gente.  Teria muita  dificuldade em atravessá-la, mas tinha pressa porque estava  atrasado. Pensei, se eu subir a torre da Barroquinha poderia ter um bom ponto para alçar voo. Engano. O campanário está no mesmo nível da Chile, ou talvez mais baixa, por cima da qual  haveria de sobrevoar.  Mesmo assim, subi naquele Mibunge (assim a chamavam os negros de língua quibunda)  de lá, pulei, conseguindo um pequeno vôo até o inicio da Rua da Ajuda por onde tomei o caminho do Pelô. Claro que tive medo daquela rua. Quem não tem medo? Os travestis abordam. Não se sabe como responder. Se desagradá-los =, a violência é certa.  Se nada respondes, serás esnobe, está discriminando. Os sorriso pode ser um  escárnio. Mas, ao final, passei ileso, tendo de explicar, não ser  fumante, não tinha cigarros. O pelourinho, deo gratias. Os caixões do moribundos, numa rua atrás da Cantina da Lua. Um sobrado barroco em penúria secular.. A esta altura já tinha escurecido e a casa estava toda iluminada com velas, apesar de ter nela luz elétrica  como as demais.
Uma multidão esperava sair o enterro, mas tudo estava atrasado pois as pessoas envenenadas estavam demorando de morrer. Desenganados por médicos, curandeiros, babalorixás, yalorixás e os demais que se metem a curar os males da carne, esperavam resignados até morte chegar.  Esperavam  sentados no chão, em cadeiras, nos sofás. Outros por serem, talvez mais práticos, estavam esperando a morte já dentro dos caixões, conversando animadamente, matar o tempo. As pessoas  traziam comida e bebidas, tanto pros moribundos, quanto pros velantes. Chegando, fizeram questão de me dar um lugar seguro para descansar. Um quarto onde havia uma cama de casal, na qual já descansava alguém. Que não me incomodasse. Bastava deitar de valete. Não me incomodei realmente, tanto que nem deitei de valete, uma vez que a cama era muito larga e havia dois cobertores.
Dum quarto de meia-parede, ouvia os comentários sobre o acidente do envenenamento das pessoas e, claro, tinha medo, um inexplicável temor que se apoderava de mim, sem razão aparente. Falavam em indenizações, em vingança e mesmo em perdão do Cristo. Preces eram feitas, não pedindo a melhora dos condenados à morte, ou que morrendo  subissem ao céu. Pedia-se firmemente a morte, diziam, minorar seu sofrimento e o deles. O velório se tornava cada vez mais cansativo e as discussões cresciam. Há de se fazer este enterro logo;  Como enterrar, se eles ainda não morreram? Os próprios condenados alegavam já não agüentar mais esperar a morte. Um queria ser cremado, em lugar de enterrado, mas outro meio gaiato disse que preferia ser mesmo enterrado, porque queimado, o Senhor Deus ia ter um trabalho da zorra pra juntar as cinzas no dia da ressurreição.  Ninguém conseguiu segurar o riso, mas al fim todos acordaram  em  ir seguindo pro cemitério, era o tempo de eles  morrerem.
Começaram a retirar os caixões. Nova discórdia. Alguns queriam logo tampar os caixões,  outros discordavam  iriam sufocá-los e não podiam fazer isto. Alguns argumentavam,  eles iriam morrer de qualquer forma, pouco importa, seja por asfixia ou envenenados. Vão morrer, mas não se pode sufocá-los, seria desumano, além de se cometer  assassinato, pois não se pode antecipar a morte de ninguém, disse um legalista. Nova  discussão:  Os caixões não podem sair pela cabeça, devem sair pelos  pés. Mitos, medo, costumes, superstições.  Saíram por fim todos. Eu que,  durante todo aquele  tempo fingira dormir, chamei meu companheiro, temia ficar preso ali. Não posso me imaginar preso naquela casa ou em qualquer outro lugar, morreria mais depressa que os envenenados. Ele acordou assustado. Não poderíamos sair imediatamente. Pelo sim, pelo não, poderiam descobrir ser eu o culpado pelo  envenenamento daquelas pessoas. Ah, meu companheiro de cama sabia mais de mim, do que eu próprio. Eu não sabia qual a minha relação com aquele cortejo a caminho do cemitério. Pasmo, pedi que me explicasse o  acontecido, ele negou explicações. Não era o momento. Que então saísse sozinho, ver e sentir o ambiente, sondar a barra. Ele saiu e eu fiquei calçando meus sapatos. Apesar de não gostar de sapatos com cadarços,  estava com um sapato social preto, feito por  Waldemar, o mago dos sapatos, lá na Princesa Isabel. Baixinhos recorriam a ele,  sabia como ninguém, fazer sapatos. Fazia-os de todo jeito, de salto duplo, com  palmilha alta, escondendo a altura do sapato que o gajo  parecesse  mais alto.  Toda a Bahia lhe devia. Encomendas até do Sul e da Europa. No meu caso, ele aumentara de dez centímetros, assim parecia eu mais alto e elegante. Elegância que tinha um preço. Cansaço. O percurso do enterro coletivo devia atravessar o Terreiro de Jesus, a Praça da Sé, seguir pela Misericórdia, passar pela Praça Tomé de Souza, entrar na Rua Chile, descer a Praça Castro Alves, seguir pela Rua Carlos Gomes, Continuar na Senador Costa Pinto, passar pelos Aflitos, entrar na Avenida Sete, seguir até o Campo Grande, entrar na Rua Araújo Pinho, no Canela, entrar à esquerda na Rua Augusto Viana, passando em frente à Reitoria, descer a Padre Feijó, e por fim, subir a ladeira do Campo Santo, onde seriam enterradas aquelas pessoas. Com um percurso deste, não seria possível que já não  tivessem morrido e prontas para ser enterradas.
De por mim, como diz o povo, se os enterrava assim mesmo, tivessem morrido ou estivessem  vivo. Não já tinham os médicos  decidido que eles iam morrer? Umas horas a mais ou a menos não fazia diferença. Esta seara ninguém entra. Há uma verdadeira barreira aos que não fazem parte desta organização. Médicos, empresários da medicina, dos laboratórios farmacêuticos e  dos equipamentos médicos formam uma corrente tão forte que ninguém de fora consegue penetrar. Eles decidem tudo. Senhores da vida e da morte. Você sabe que com sua doença você passa a ser consumidor e está beneficiando o hospital com toda sua parafernália de equipamentos, médicos, enfermeiros, laboratórios farmacêuticos e fabricantes de equipamentos e material cirúrgico e, no entanto, você está ali mendigando, sem poder dizer uma palavra de indignação, por medo de ser deixado à sua sorte e  morrer e nada acontecer, porque Deus quis assim. O  cidadão ali deixa de ser um cidadão. Quando morre, a família ainda põe no jornal nota de agradecimento pelo esforço, espírito de cooperação e solidariedade de todos no tratamento daquele que o senhor foi servido de levar à sua glória. Que descanse em paz, (Alguém pode descansar sem paz?) e os demais que fiquem com os reais. Quem não sabe que o médico tem comissão sobre a receita que passa? E  sobre o material cirúrgico que usa? Quem não  sabe que os laboratórios impõem determinados remédios? Que os fabricantes de materiais cirúrgicos travam uma verdadeira guerra entre si para impor seu produto nos procedimentos médicos? Que fazem os poderes públicos? Absolutamente nada, porque quem deveria fiscalizar tem interesses ali dentro. É o mesmo que entregar o galinheiro à raposa, mandar o macaco tomar conta de um cacho de banana. A indústria do laranja está arraigada ali dentro e muitos são os verdadeiros donos de empresas que tem em seus contratos sociais simples  empregada doméstica, caseiros de um sítio, porteiros ou outro empregado da empresa. Pessoas que dão seu nome para criar um contrato social,  entregando toda sua vida aos verdadeiros donos, através de uma procuração com poderes absolutos para agirem em seu nome.




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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O MALEMBÁ






















Subia a Rua Oito de Dezembro, vindo da Rua Santa Rita de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. À esquerda, na altura da casa de Dr. Hermógenes, ou melhor, em frente à casa de Frank, existia uma frondosa gameleira branca na qual  eu comecei a escalar. Logo percebi que a  cada passo acima, a gameleira  se afundava. Insisti, mas tanto subia, tanto descia. Seu tronco já afundara pela metade.
Estava nesta lida quando surge um rapaz, bigode fino, um cabo-verde, cabelos negros como a asa da graúna, como dizia Alencar. Eu estava profanando a árvore, uma gameleira branca, um malembá sagrado, um irocô. Estava apenas escalando-a pra poder voar. Curiosos se achegaram, iniciando uma discussão sobre a sacralidade da árvore e minha capacidade de voar. Eu mesmo, por medo da multidão, passei a defender a árvore e sua sacralidade, enquanto uns me chamavam de impostor, de palhaço, um babaca, querendo aparecer. Só então, vi um ojá branco amarrado ao malembá, formando um laço e  restos de omalá, inhame, um pernil de carneiro, patas de cágado,  ajabó,  caruru, feijão fradinho,  deburu,  acaçá,  ebô e outras iguarias  em alguidares  espalhados pelo chão.  Eró Zaratembo.
O clima estava ficando tenso. Surge um senhor, de aspecto   ameaçador e conciliador, ao mesmo tempo, trazia .na mão um ixã. Era o Tatá de Inquice, pai do rapaz que falava comigo. Então percebi ser ali um terreiro e aquela árvore, um irocô. Moreno magro, bigodinho brilhante  e cabelos encaracolados,  trazia um sorriso nos seus olhos verdes. No andar, no trajar, um certo  ar de fidalguia e elegância. Calças de seda branca e casaco de seda verde, ornado com rendas amarelas nas bordas. Fez sinal para que nos calássemos, com tanta magia no olhar que a  contenda teve fim. Disse não estar ofendido pelo meu ato. Não fizera por mal. Piores, gente da casa,  profanadores dos ritos sagrados. Agradeci por aquelas palavras de sabedoria e pedi  permissão para mostrar a todos o que pretendia fazer, assentiu o doté.
Mas acabei deixando de lado o irocô e subi no  muro do Ilê de onde vi o despenhadeiro,  antepondo-se ao palacete Henriqueta Catarino. Abri meus braços, nem preciso dizer, voar sempre me trouxe de pavor, medo de não voar e passar decepção. Como saltar de paraquedas que não se abre. Lancei-me, entretanto, no espaço,  braços abertos no ar. Sacudi-os arriba, abaixo. Comecei alçar vôo. Puxava o  ar como se estivesse nadando. Os braços-asas. Viu a cajazeira, logo encostado ao muro do quintal do Dr. Hermógenes, a quinta do palacete, onde tantas vezes fora roubar frutas, incentivado por Clarisse, a babá dos meninos. Vi, em seguida,  o cemitério, não o dos ingleses, mas outro, a seu  lado. Passei a planar tranquilamente sobre árvores, campas e torres. Pousei, afinal sobre uma sepultura. Uma velha e uma jovem rezavam entre flores e velas. Assustaram-se com minha chegada. Abraçaram-se gritando uma pela outra. Mãe e filha. Nem adiantou pedir-lhes calma. Mais ansiosas ficaram. Profanador, gritaram.  Lá de cima,  palmas pelo meu feito. Elas não entenderam. Imprecavam contra mim e contra eles.  A jovem,  passou la mão num jarro e o atiçou contra mim. Pedras, paus. Pernas, pra que te quero? Pisando quase nos meus cascos  xingavam, gritavam. Saía fogo de suas bocas, ou era água que queimava. Trepei num túmulo mais alto. Tentei alçar vôo. Não consegui. Quem  me aplaudia lá de cima, passou a me vaiar. Alguns desceram a me perseguir no cemitério. Corria e corria e corria. Minhas calças caíram. Eu não tinha mais minhas calças. Com as mãos, escondia as vergonhas. Isto me impedia de correr mais depressa. Pega o Bruxo. Pega o necrófilo. Ele voa como bruxa. Ele voa sem bassoura. Lá em cima cresceu o movimento de gente. Vociferavam contra mim. Podia ver de longe,  Ruy Barbosa com seu bigode branco,  lunetas de aro fino, e gravata borboleta, cerrando os punhos, gritando. Réprobo,  Íncubo. Arimã. Anhangá do inferno. Sujeitinho pernóstico, até pra xingar vem ele com este linguajar tirado a clássico. Também pudera, um homem fora do seu tempo. Conhecida tudo do passado, menos do presente. De outro lado, cabelos revoltos, barba apocalíptica, atroava Glauber Rocha,  como se estivesse dirigindo uma cena de seus filmes. Corre porra. Abre os braços. Sobe naquela torre.  Voa porra. Voa.  Gritos de um louco que  me deixavam varrido.  Eu não sabia bem o que fazer. Castro Alves vendo aquela multidão,  cofiou o bigode, passou a mão pela vasta cabeleira,  começou a esganiçar: “E eu sei que vou morrer, dentro em  meu peito um mal terrível me devora a vida. E morro ó Deus! na aurora da existência. Adeus, vida! adeus glória! Amor! Anelos!”. A turba gozava meu infortúnio, como gozaram o incêndio do Mercado Modelo. Torres mouriscas se derretendo sob as línguas do fogo, tal como ardiam as pessoas sob o fogo da Santa Inquisição. (E como era santa).  Olhava ao redor. Uma árvore, precisava  subir, não havia, porque palmeiras, cajazeiras e ciprestes  eram difíceis de  se escalar. Na azáfama de me livrar daquela agonia, entrei na igreja daquele santo campo, onde o padre Antonio Vieira, o paiaçu dos Tupinambás, dizia, ante um féretro sobre a essa, uma missa perante uma assistência chorosa e triste. Alvoroço, com minha presença. Um salteador, pensaram. Calma gente, calma. Me ajoelhei num banco, tentando fazer uma oração, tentando só, porque nenhuma passava das primeiras frases. 


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.