Vários prédios compunham um conjunto de estilo
neoclássico alguns, barrocos outros. Pareciam serem todos construídos em estilo
barroco, tendo sido remodelados depois. Vi,
em dezessete de julho de mil novecentos e oitenta oito, amplos jardins separando-os.
Um deles, com vários pavimentos, abrigava uma
espécie de cemitério ou panteão. Ornavam-no ciprestes em fileiras, longas, e,
árvores diversas, mangueiras, gameleiras
tornando o ambiente tranquilo, mas sombrio e tenebroso. O ar, impuro, exalava
cheiro de carne apodrecida. Insetos
esvoaçavam por sobre mim, como moscardos, monstros de cem olhos, perseguindo a bela Io, paixão de Zeus.
Não sei se mais nojento o costume dos parsis,
adoradores do fogo, de não enterrarem
seus mortos, preferindo deixá-los em altas torres para serem devorados por
abutres. Não querem contaminar a terra. Mazda certamente é um deus moderno e
ecológico.
Nos túmulos, bandejas de iguarias: garum (molho
de peixe) puls, papa de cereais, fava
ou queijo, mel e gema de ovo; bensone, bolo de farinha de
trigo, leite, açúcar, manteiga, ovos, raspas de limão, fermento e sal, tinham
sido depositadas como oferendas, que seriam oferecidas posteriormente aos
convivas. Um túmulo me impressionou sobejamente. Ali jaz uma anciã. Um anjo desce tocando a trombeta do juízo final. Ela se levanta em prece e num esforço descomunal suspende a laje que
a prendera por longos anos e talvez séculos. Não me ocorrera que se tratava do
túmulo da mãe de Le Brun, mestre da
escultura funerária.
Era dia de festa. Qual? Não me recordo. Me vi
num salão amplo e multi-decorado. Havia uma mesa repleta de bandejas com
guloseimas. Doces e iguarias das mais variadas qualidades e outras vinham sendo
trazidas por garçons vestidos a rigor.
Mama, a zeladora d´oferendas não deixava que fossem tocadas e mandava as iguarias, que já tivessem cumprido sua função. Seriam saboreadas pelos visitantes.
Ajudava mamãe nesta labuta. Neste dia muita
gente havia. Eu me apressava para trazer as bandejas para os convivas. A
Multidão me atrapalhava nesta lida. E para não me atrasar, voava de um túmulo a
outro, de um prédio a outro, passando por cima dos jardins. E como os prédios
eram altos, tive de voar como um mupungu para que não batesse nos tetos.
De repente me perdi. Não encontrei o prédio
principal e já escurecia e precisava voltar ao panteão, queria comer da torta
de chocolate vista naquele túmulo preto e branco, de personalidade, por mim, não sabida..
Voando,
me distrai e dei numa igreja repleta de
gente, ouvindo uma missa cantada por
seminaristas de batinas pretas e sobrepelizes
de alvura sem par. Missa dita no
altar-mór. Fiquei parado, observando as funções, os rituais. Boquiaberto, ainda
haviam pessoas religiosas.
O
cântico, ali, talvez tocasse os presentes. Um canto gregoriano de uma beleza simples,
uníssona e contagiante. Pater noster, qui
es in cælis, sanctificétur nomen tuum... Era como se tivesse voltando
vários séculos no tempo. Senti como se todos estivessem suspensos no ar. Com a
luz mortiça das velas, das lâmpadas elétricas escondidas nas cornijas, ou
incrustadas em forma de velas em grandes castiçais ou em lustres pendentes do
teto transmitia uma atmosfera lúgubre,
mágica e fantasmagórica, hipnotizava o crente e seu observador.
Andando,
observava fiéis em sua oração. O barroco, o altar-mor e capelas laterais,
estas, permitiam a cada um fazer orações
aos santos de sua devoção, ou mesmo
conversar baixinho, sem incomodar os demais.
Numa
capela, uma mulher loira de olhos azuis, nem tanto loura, mas um pouco moura,
segurava uma criança e parecia conversar com alguém atrás de uma cortina.
Olhou-me com olhos de basilisco. Não
tens o poder de matar, pensei. Erraram o mais velhos. Inofensivo iguanídeo, não
me importo que tenhas teus olhos de
feitiço. Vou para ti, mulher. Segura teu filho, não o deixes chorar.
Vestia
um comprido vestido lilás, à maneira
grega, aberto em cada lado, deixando entrever o corpo quando em movimento.
Parecia ser padre o homem com quem conversava. Era alto e bonito. Trocavam furtivos gestos de ternura e suspendiam a
criança, brincando. Olhar de ciúmes. Desejo traído pelos olhos. Quem não ama a
aventura mesmo que a tema? De medo não me aproximei, mas quem há-de? Fitava-os
disfarçadamente. Fingia interesse no altar, ricamente decorado com flores
brancas, contrastando com o dourado do templo e o púrpura das cortinas
pendentes do teto. Na capela ao lado, uma pequena audiência assistia a um
sermão. Um padre hirto, barbudinho, Inspirando simpatia dizia sua homilia. “Considera-te já como morto. E, como se tu
mesmo foras outra diferente
pessoa viva, põe-te a olhar para teu corpo defunto. Adverte como fica
feio, pálido e desfigurado. Alguém de casa lhe cerra os olhos, aperta o queixo,
estende os pés, compõe os braços e, amortalhado em um pobre lençol (que é o
despojo que leva de todas as coisas deste mundo) o põe na casa sobre um pano
negro, com luzes a uma e outra parte. Vêm os ministros da igreja, rezam o responso,
tomam em peso o cadáver, que está mui inteiriçado, frio e pesado e com
princípios de corrupção, e descem para o meter na tumba, despedindo-se dele os
domésticos com algumas lágrimas, que brevemente se enxugam e para o defunto são
totalmente inúteis. Caminham à igreja, aonde está prevenida uma cova, e
amontoados a um e outro lado dela muitos ossos e muita terra que lança de si o fartum dos mortos, de que costuma ser
cama. Este espaçoso e ameno palácio onde há de morar o novo hospede, até que a
trombeta de um Arcanjo o acorde e o mande levantar, para que dê conta e leve o
prêmio ou pena do que serviu ou ofendeu a seu criador. Ali deixam cair o
cadáver, ossos e terra por colchões, terra e ossos por cobertores. Começam a
calçá-lo a golpes de enxada, põem-lhe uma
laje em cima; vão-se os circunstantes, uns a comer e beber, outros a rir
ou contar novas, outros a tratar do seu negócio. E daí a poucos dias
desapareceu até a memória do tal defunto, e ainda a mulher e filhos o nomeiam
poucas vezes, e talvez para o praguejarem, se deixou pouco remédio
Vês, alma
minha, o que é o mundo? Vês o que é o corpo? Pois para que adoras no regalo e
comodidade do teu corpo? Para que idolatras na estátua fantástica do mundo? À
vista de tão horrendo espetáculo e desengano palpável, não me dirás de que
serve desvelar-te por amontoar fazenda com inquietação da tua consciência, por
crescer na honra, por sair com teu apetite? Onde está agora tudo que deu prazer
e recreação a teus sentidos? Que proveito tirastes da vaidade e da malícia?
Como és tão néscio, que com ofensa grave de Deus cativas a tua alma e o teu
corpo, e todo o tempo e cuidado se te vai em acomodar, fomentar e defender? Não
vês que é pó e bichos, horror e podridão? Não sabes que te não há de pagar
esses obséquios senão com tormentos?”
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
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