sábado, 20 de maio de 2017

VIAGEM A BONFIM DE VILA NOVA DA RAINHA






Pedes que te conte o acontecido, em quatorze  de junho de 1990, para que possas com veracidade narrar aos pósteros. Contarei à maneira de Plinio Cecílio Segundo, ainda que me traga horror e tristeza.
Cheguei às 12 horas a Senhor do Bonfim de Vila Nova da Rainha, Arraial do Senhor do Bonfim da Tapera, ou ainda Arraial da Missão do Sahy, indicado pela OAB, assistente de acusação no júri do homicídio de Helio Pombo Hilarião, advogado assassinado, tal Eugenio Lira, por defender posseiros. Fui ao fórum, ver o processo e depois, saí, matar saudades. A catedral, um barroco tardio,  singela, mas, torres imponentes. O prédio da prefeitura, amarelo ocre. O Colégio N.S. do Santíssimo Sacramento (Sacramentinas). Sonhar. Donzelas belas por seus corredores. O Ginásio S. Coração, os Maristas, de imponentes palmeiras reais. Jovens sertanejos buscam a sabença.  Companheiros de badogadas em Capela do Alto Alegre, falavam. As moças do Sacramentinas iam à missa no Marista, ou quando iam eles às Sacramentinas. Não mais olhar o Senhor na cruz, ver nas estudantes o amor carnal à Bernini. Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, em êxtase, cabeça para trás, boca entreaberta e pálpebras semi-cerradas. A mão do.anjo toca suas vestes,  descobre-lhe os seios. Com a outra, segura uma flecha, aponta suas entranhas, já penetrada outras vezes. Dor e prazer. O corpo, envolto em vestes drapeadas, levita sobre  revoltos lençóis. Da expressão podia se ouvir palavras: Um êxtase caiu sobre mim tão de repente que quase me ausentei de mim mesma. Eu ouvi aquelas vozes, agora  eu quero falar não com o homem mas com  anjos.  Perto de mim, um anjo apareceu em forma humana, em sua mão eu vi uma enorme lança dourada e na sua ponta de ferro, parecia haver fogo. Eu senti como se ele a enterrasse várias vezes em meu coração, de forma que penetrou todas minhas entranhas. Quando ele a puxou, tirou com ela minhas tripas, e me deixou totalmente inflamada com o grande amor de Deus. A dor foi tão grande que me fez gemer várias vezes; Que gemidos. Ver o casario antigo, A igreja N.Sra. da Maravilha, a Cruz da Redenção, na Antônio Gonçalves, A casa  do Coronel Antônio Félix Martins, hoje, o bispado, e onde se hospedou Ruy Barbosa, única do sertão por ele visitada,  Terra do Bom Começo, chamou-a. Um intelectual livresco, alheio à realidade brasileira. Caçadores de ouro e pedras preciosas nas minas de Jacobina, boiadeiros, tangedores de gado, descendentes, empregados de Garcia D´Avila; Paiaiás, pataxós  e Kariris correndo campo, abatendo o tapir; negros servindo brancos,  fugindo para o quilombo de Tijuaçu; O encourado vaqueiro lascando a catinga, derrubando o pé-duro; moças casamenteiras adornando missas na catedral. As meditações de  Anatole France: E se procurarem saber porque é que todas as imaginações humanas, frescas ou murchas, tristes ou alegres, se voltam para o passado, curiosas de nele penetrarem, acharão sem dúvida que o passado é o nosso único passeio e o único lugar onde possamos escapar dos nossos aborrecimentos quotidianos, das nossas misérias, de nós mesmos. O presente é turvo e árido, o futuro está oculto. Chega à estação do trem. Um prédio sem estilo, laivos do barroco, ainda assim belo, de 1944. A linha férrea, de 1887. Fotografia da primeira estação, demolida. Um onjunto harmônico:  armazém, casas de funcionários. A destruição do passado;  Uma paisagem ainda bucólica. Ao fundo, Serra do Gado Bravo, Cordilheira do Espinhaço. O fim das ferrovias em beneficio das montadoras de automóveis e industrias afins.
 Ali corria a  vida. Reunia-se, ali aos domingos, depois da missa. As novidades da Bahia. Beber, papear, namorar, fofocar. Malas e pacotes embalavam anseios. Pressa, apreensão de quem parte, a miúde regado a choros e abraços demorados; Alegria dos que chegam, rever os seus, encontrar novos. De Lisboa a Paris. Santa Apolônia e Montparnasse, nem se lembra,  Gare Du Nord?  Noite em Paris. Amontoados nos bancos da estação. Brasileiro e portugueses. Hoteis cheios ou caros. Os tugas, órfãos de Salazar, vomitando  a ditadura. Eu, em fuga de 64.  Ah!  estações, um mundo. Onde estivesse, visitava-as sempre a ver, rever, relembrar, e sonhar. Buscar nos gestos, no olhar  o sentimento do viajante. Novas, estranhas terras. Os portugueses. Navegadores intrépidos sobre ondas bravias, enquando a Europa se escondia sob as saias do clero. E ao imenso e possível oceano , ensinam estas Quinas, que aqui vês,  que o mar com fim será grego ou romano:  O mar sem fim é português. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei  este padrão ao pé do areal moreno  E para diante naveguei. Vasco da Gama no caminho das índias; Camões gesta os Lusíadas, em Macau e  retorna  a Goa e de um só braço nada, doutro salva o escrito do revolto mar:

Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta / Que outro valor mais alto se alevanta.

Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve na livrarias.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

HORDÉOLO


Filomena Moretti, Asturias - Isaac Albeniz


Acorda sonordelento o menino, passa cuspe na remela. Abrir os olhos. Inda a voz rouquenha do guru sertanejo e o responso dos fieis, como vozes vindas do além, ressoam  em sua mente.
                        Maria valei-me
                        Aos vossos devotos
                        Vinde socorrei
                        Vosso amor se empenha
                        Ó Virgem da Penha
                        Penha onde mora
                        Na fonte vital.
E o responso em coro:
                         Na fonte vital
                         Na fonte vital.

Todo menino é rei,  faz castelos de cristal,  encostado ao muro do  quintal. Pensa. Meninpedra, filosofal. Remelento, dedo na mão, esfrega. Tocar terçol. Quenturinha boa pra curar.  Olha o monturo chamusquento. Nojenta alfurja, onde se joga as imundícies. Restos crus, cozidos, palhas de grãos, cereais, panos, molambos, penicos de mijo e bosta, pasto de cães, porcos e  jumentos, galinhas e urubus. Dava um fogo quase morto. Fumo subindo, redemoinhos,  odores que aos animais não parecem incomodar. Queima a toda noite, um gosto especial aos restos  sapecados, como carne de fumeiro ou moqueada. No fim do mundo tudo vai pegar fogo, nojento,  de fazer medo.  Devia ser de água como se havia acabado antes.  Não, água também é muito agoniado. A morte vem boiando, zombando da gente. De braços abertos, estatelada. Pra lá e pra cá. Como bosta n´água. De fogo é melhor. Eterno, transforma, purifica  o homem,  um dia tudo será fogo, disse o obscuro Heráclito.O fogo do inferno, anunciado por Mr. Fanali, sous les toits de Paris. Queima tudo, até os ossos. Adeus viola. Não vem fazendo careta. Enfurecida. De uma vez. Mesmo que se corra. Fuçama de noites mal dormidas, canto aos mortos,boates de cigarros fumegantes entre lábios femininos. Aqui, nem sempre é uma festa.
Filomena, não a Moretti da guitarra em Asturias de Albeniz,  a do padeiro do violão,  também morena, gamela na cabeça, dar comida aos porcos, passa. Toca a viola:
- Pensando no fim do mundo? Tu já tem  juízo pra pensar?
 Tocou na sua matadura. Pôs a viola no saco. Ouvirá Ana Vidovic na Catedral do paraguaio Agustin, o Mangoré,e se lembrará, não sem saudade, de não caber dentro de si, não sem saudosismo,  não tanto salutar, mas com um pingo de vida porque como disse alguém, relembrar é viver duas vezes, lembrará sim, de Lilinha, irmã sua, no  violão, nas noites de Capela. Contraponto aos cagas-sebos no arvoredo, os trinados de sangue, cabeça de cardeal. Canarim, assanha  sanhaço. Xéxeus xiando  sacudidos nos seus ninhos, como bolsas, de gravetos, pelo vento. Polifonia do sertão, milho pilando no pilão, manteiga a chacoalhar na cabaça, Mancambira, a gungunar, remedando caminhão, o  bate-bate na bigorna Zé Cadeira, Zé Ferreira e Tunin Gomes. Bate, bate coração, bate o ferro na bigorna, bate a seca no sertão. Bate o vento balançando a cerração. Bate o vento balançado  coração.Quando tu balança, toda a  terra dança.
  

Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança

Madrugada entrando
E o fole gemendo
Poeira subindo
E o suor descendo
Quem não tava "bêbo"
Já tava querendo
E eu cambaleando
Ia te dizendo
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança

Tava requebrando
E eu naquele jogo
Eu tava me esquentando
Mesmo sem ter fogo
Só batia palmas
De pernas puxada
Como quem atira
Em onça pintada
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança 


                      Mas não é mesmo, Gonzaga? Ô macho, manda esta muié parar  qui já tou todo molhado, senão, para o fole Seu Gonzaga, para este fole marvado.



Continuação no livro Noite em Paris, breve nas livrarias.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

ANTÕE CEGO






Tempo menino, de molecada, dos causos contados, vistos, vividos. Seu Antônio, o dia  negociava, tocando  venda com um pouco de tudo, e como toda boa venda, a cachacinha era o carro chefe. Cego,  na gaveta, um  sininho  pendurado, controlar o ogó. Que ninguém se aventurasse a puxar aquela gualdra, o badalo  denunciaria  o larápio. Até mesmo um de seus  filhos foi um dia vítima de sua esperteza. Tentou  afanar alguns trocados.  Dlim, dlam, num pulo, alcançou o aventureiro, agarrando-o pelo saco. Um grito o denuncia, passando a sofrer da vergonha à sova, como costumavam dar os pais  aos filhos em erro. Hoje, até cadeia daria. Munda o mundo,  filhos, não aprenderam a apanhar,  batem nos pais. Pais, tios, avós, e até de irmãos mais velhos batiam, não havia revoltados, ladrões nem trombadinhas. Ou bem poucos. Palavras bonitas, por castigos, psicólogos, pedagogos e quejandos, permissividade a caminho, o culto à beleza, à juventude e discriminação dos mais velhos, dos diferentes. Professores achincalhados,  mortos por alunos.  A pedagogia do medo. O lente é quem tem medo.
À noite, mestre Antônio transmudava-se. “Nesta terra de Índia usam  muito de feiticeiros e de adivinhadores e  mormente nesta costa da Índia que se chama Costa do Malabar e chamam a estes adivinhadores, de canaiates. Gaspar Correia em 1563 sobre o curandeirismo na Índia, prática universal.Tirésias nordestino a todos atende com denodo e heroísmo. Na tasca, labuta o dia. À noite,  templo e magia. Olhos de menino. Acordam cantares lúgubres, o mantra de tambores tangidos. Mãos d´enxadas amainando a terra, o enxó,  tronco, a bigorna gemendo nas tardes, e o  martelo que não é a torre de Sandicove que Joyce imortalizou no Ulisses, comendo.
M´inin´ainda. Olhos abertos para as trevas. Máquina de costura. O correr da roda, o fiar d´agulha sobre o tecido. Plangor de alegria e dor. A sineta chacoalha com força e alarde. Via. Longos vestidos brancos, xales na cabeça, escondendo a beleza das mais jovens. Calças brancas e camisas de punhos longos brancos. Se branco para os egípcios era a cor da alegria,  para o africano afasta a morte, para si,  tristeza e morte. Não se enterravam os mortos de branco?
O desconhecido traz medo, mas também curiosidade. Quando a mãe não queria,  ia sozinho ver. Era só passar uma casa, pelo quintal. Do alto de seu altar comandava a cerimônia e dava inicio às litanias. Sacudia-se um  xexerê e uma sineta marcando o inicio do ritual, a chegada de um espírito levando ao transe um ou mais dos fieis. Quando o espírito era bom se festejava o mais que se pudesse até o axirê. Quando o espírito era mal, todos reverenciavam com temor, mas solicitando, implorando e imprecando para que deixasse aquela alma penada. Na cura do doente, fazia-se  procissões, conduzindo-o embaixo de lenços brancos à maneira de pálio, com varas sustentados por acólitos, acompanhadas de cantos às vezes  estranhos. Deviam sortir efeito, pois  a casa estava sempre cheia.
Santa Maria, Mãe de Deus, dizia o demiurgo, Rogai a Jesus por eu, respondido por beatas e beatos.
A molecada dizia que a certa altura, quando as beatas entravam em transe o curandeiro gritava: Vou virar bicho do mato, pra comer vocês todinhas. Elas respondiam : Primeiro eu, padinho, Primeiro eu, padinho.
Pela fé o homem mata, morre e move montanhas, não dizia o pregador de Nazaré? Como explicar a saga de Matota e Marata, os beatos José Maurino e Maria Nilza que, em ritual da chamada Igreja Universal Assembleia dos Santos, sacrificaram  crianças por afogamento na praia de Stela Maris? Que dizer do pastor Jim Jones da Igreja Templo do Povo cuja pregação  levou quase 900 pessoas ao suicídio na Guiana? Não está escrito?  A cidade, com tudo o que nela existe, será consagrada ao Senhor para destruição. Somente a prostituta Raabe e todos os que estão com ela em sua casa serão poupados, pois ela escondeu os espiões que enviamos.
E Consagraram a cidade ao Senhor, destruindo ao fio da espada homens, mulheres, jovens, velhos, bois, ovelhas e jumentos; todos os seres vivos que nela havia. Ô, Javehzinho escroto. Por que não poderia mestre  Antônio,  em noites de lua cheia, com  hinos e cânticos, gritos e gemidos levar seus pacientes ao transe?

          Santo de Todos os Santos
          Todos venham me ajudar
          Os trabalhos qu´eu fizer
          Ninguém possa desmanchar.
          Sou barro forte
          Massapê, barrostroá
          Sou caboclo da jurema
          Só faço o bem, não faço o mal.


           Mistérios da cura, sem explicação, tudo o que se não pode explicar é mistério. Muitos se diziam curados. Nas noites mal dormidas acompanhava a função até o final. Nunca viu alguém entrar de muletas e sair com as próprias pernas. Rituais eternos, transmitidos de século a séculos. Casta privilegiada, segredos guardados, poder e magia. Em Capela vi, cego sem curar sua própria  cegueira,  cuspir  no chão, fazer lama e, orientado seus acólitos,  passar sobre o olho do fiel tão  cego quanto ele. Também posso fazer milagres. Quando crescer. Começar vendendo passarinho. Pensava, em vigília. Hoje é maldade, contra a ecologia. Crime ecológico. Milhares de animais em extinção. Não se ouve mais o canto da juriti nas manhãs de sol. Comprar  os panos brancos, fazer as roupas. Fazer milagres e enriquecer. Antõe era pobre, por querer, ou por burrice. Eu não, vou ficar rico.



Breve, Noite em Paris, nas livrarias.