Tempo menino, de molecada, dos causos contados, vistos, vividos. Seu Antônio, o dia negociava, tocando venda com um pouco de tudo, e como toda boa
venda, a cachacinha era o carro chefe. Cego, na gaveta, um sininho
pendurado, controlar o ogó. Que
ninguém se aventurasse a puxar aquela gualdra, o badalo denunciaria o larápio. Até mesmo um de seus filhos foi um dia vítima de sua esperteza.
Tentou afanar alguns trocados. Dlim, dlam, num pulo, alcançou o aventureiro,
agarrando-o pelo saco. Um grito o denuncia, passando a sofrer da vergonha à
sova, como costumavam dar os pais aos
filhos em erro. Hoje, até cadeia daria. Munda o mundo, filhos, não aprenderam a apanhar, batem nos
pais. Pais, tios, avós, e até de irmãos mais velhos batiam, não havia revoltados, ladrões nem trombadinhas. Ou bem poucos. Palavras bonitas, por castigos, psicólogos, pedagogos
e quejandos, permissividade a caminho, o culto à beleza, à juventude e
discriminação dos mais velhos, dos diferentes. Professores achincalhados, mortos por alunos. A pedagogia do medo. O
lente é quem tem medo.
À
noite, mestre Antônio transmudava-se.
“Nesta terra de Índia usam muito de feiticeiros
e de adivinhadores e mormente nesta costa
da Índia que se chama Costa do Malabar e chamam a estes adivinhadores, de
canaiates. Gaspar Correia em 1563 sobre o curandeirismo na Índia, prática universal.Tirésias nordestino a todos atende com denodo e heroísmo. Na tasca,
labuta o dia. À noite, templo e magia. Olhos de menino. Acordam cantares
lúgubres, o mantra de tambores tangidos. Mãos d´enxadas amainando a terra, o
enxó, tronco, a bigorna gemendo nas tardes, e o martelo que não é a torre de Sandicove que
Joyce imortalizou no Ulisses, comendo.
M´inin´ainda.
Olhos abertos para as trevas. Máquina de costura. O correr da roda, o fiar
d´agulha sobre o tecido. Plangor de alegria e dor. A sineta chacoalha com força
e alarde. Via. Longos vestidos brancos, xales na cabeça, escondendo a beleza
das mais jovens. Calças brancas e camisas de punhos longos brancos. Se branco
para os egípcios era a cor da alegria,
para o africano afasta a morte, para si, tristeza e morte. Não se enterravam os mortos
de branco?
O
desconhecido traz medo, mas também curiosidade. Quando a mãe não queria, ia sozinho ver. Era só passar uma casa, pelo
quintal. Do alto de seu altar comandava a cerimônia e dava inicio às litanias. Sacudia-se
um xexerê e uma sineta marcando o inicio
do ritual, a chegada de um espírito levando ao transe um ou mais dos fieis.
Quando o espírito era bom se festejava o mais que se pudesse até o axirê.
Quando o espírito era mal, todos reverenciavam com temor, mas solicitando,
implorando e imprecando para que deixasse aquela alma penada. Na cura do
doente, fazia-se procissões,
conduzindo-o embaixo de lenços brancos à maneira de pálio, com varas
sustentados por acólitos, acompanhadas de cantos às vezes estranhos. Deviam sortir efeito, pois a casa estava sempre cheia.
Santa Maria, Mãe de Deus, dizia o demiurgo, Rogai a Jesus por eu, respondido por beatas e beatos.
A
molecada dizia que a certa altura, quando as beatas entravam em transe o
curandeiro gritava: Vou virar bicho do
mato, pra comer vocês todinhas. Elas respondiam : Primeiro eu, padinho, Primeiro eu, padinho.
Pela
fé o homem mata, morre e move montanhas, não dizia o pregador de Nazaré? Como
explicar a saga de Matota e Marata, os beatos José Maurino e Maria Nilza que,
em ritual da chamada Igreja Universal Assembleia dos Santos, sacrificaram crianças por afogamento na praia de Stela
Maris? Que dizer do pastor Jim Jones da Igreja Templo do Povo cuja
pregação levou quase 900 pessoas ao
suicídio na Guiana? Não está escrito?
A
cidade, com tudo o que nela existe, será consagrada ao Senhor para destruição.
Somente a prostituta Raabe e todos os que estão com ela em sua casa serão
poupados, pois ela escondeu os espiões que enviamos.
E
Consagraram a cidade ao Senhor,
destruindo ao fio da espada homens, mulheres, jovens, velhos, bois, ovelhas e
jumentos; todos os seres vivos que nela havia. Ô, Javehzinho escroto. Por
que não poderia mestre Antônio, em noites de lua cheia, com hinos e cânticos, gritos e gemidos levar seus
pacientes ao transe?
Santo
de Todos os Santos
Todos venham me ajudar
Os trabalhos qu´eu fizer
Ninguém possa desmanchar.
Sou barro forte
Massapê, barrostroá
Sou caboclo da jurema
Só faço o bem, não faço o mal.
Mistérios da cura, sem explicação,
tudo o que se não pode explicar é mistério. Muitos se diziam curados. Nas
noites mal dormidas acompanhava a função até o final. Nunca viu alguém entrar
de muletas e sair com as próprias pernas. Rituais eternos, transmitidos de
século a séculos. Casta privilegiada, segredos guardados, poder e magia. Em
Capela vi, cego sem curar sua própria cegueira, cuspir no chão, fazer lama e, orientado seus
acólitos, passar sobre o olho do fiel
tão cego quanto ele. Também posso fazer
milagres. Quando crescer. Começar vendendo passarinho. Pensava, em vigília.
Hoje é maldade, contra a ecologia. Crime ecológico. Milhares de animais em
extinção. Não se ouve mais o canto da juriti nas manhãs de sol. Comprar os panos brancos, fazer as roupas. Fazer
milagres e enriquecer. Antõe era pobre, por querer, ou por burrice. Eu não, vou
ficar rico.
Breve, Noite em Paris, nas livrarias.
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