quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

NÃO MORO COM ELE










                     



                                       


                           Por quê tu me perguntas isto? Que diferença faz? Estrambótico, do vestir ao sorrir. Rei da cocada preta. Não, não moro com ele. Se joga. Não o quero. Nem mesmo pra passear meu cachorrinho. Me encanta, o poder, não me assusta. Quem o inferno visita, com os demônios se acostuma. A amígdala cerebral se acostuma com os atos desonestos, confirma o ditado. O mal pela cabeça, antes que ele cresça, afaste-se. Aprendi a me desvencilhar. Viver é uma arte. Emeios, zapes, bilhetinhos de coraçãozinhos. No lixo, jogo. Mesmo sem concordar com alguma coisa, faço meu trabalho. Cérebro pensante, coração amante. Desentendida. Amante, o ágape cristão. Ri, te como, um dia. Se a loba descobre. O poder corrompe. Afasta-te do inferno para não te acostumares com o demo. A glória, o general conquista, o soldado, sua. Não dividir. Não me encosto, estou sob seu bastão. Um dia, meu amigo, compreenderás esta engrenagem, quando, feito teu papel, fores defenestrado. Terrível é a vida, mas bela, aproveita-a, que o ódio faz mais mal a quem o tem, do que a quem odeias. E tu, por quê me perguntas? Imaginas tu que obediência é sujeição? Imaginas tu uma paixão assim? Todos nós temos nosso dia de descarte, tão logo termine nosso papel. É o jogo do poder. Marionetes somos, acreditando-nos titereiros, manipuladores, neste teatro de guinhol. Quando nasci, já Euclides da Cunha havia predito: o sertanejo é antes de tudo um forte. Acostumada. Quem comeu paçoca de rapadura, pegou leite na noite, lavou defuntos na morgue da Ile de France, sacudiu de volta, lacrimejantes bombas no longe de 68 não pode ter medo mais de nada, e, tendo, porque a idade nos tira a coragem e nos dá juízo. Fortalecida estou para enfrentar a vida e os preconceitos. Fulos ficam. Bahia não é Brasil. Que a Bahia seja  Brasil para pisarem. Ao me pisar, saem pisados. Não quero ódio, mas resistir ao ódio, ao preconceito, à discriminação. Aqui, sou rainha, imperatriz. Deixem-me ouvir a milonga de Cardoso. Palavras. Me levam ao nordeste. Longe, saudade da toada, dos encantos da boiada, no aboio da vaqueirama. Mas não sou manada. Entrebatem-se, enredam-se, transam-se e alteiam-se riscando vivamente o espaço, e inclinam-se embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada "estoura"... E lá se vão; não há mais contê-los ou alcançá-los.
                            E agora José? Sabe nada, inocente!
                       Éramos. Quando dormíamos de valete, naquele oitavo andar do dezesseis, rua d`Assas, assomando, assáz frequentemente, a vontade de virarmos, cabeça com cabeça. Vontade, só. Tinhas tu, Horus, medo, de quê? Aqui, hoje, morro de vontade. Saudades de pernas roçando, do cheirinho de corpos esquentados embaixo de cobertas mal lavadas, cheirando a nós dois. Não, não tenhas medo. Corre as vistas no passado. Vês? Todos os sorrisos foram teus. Tu te lembras? Escobar me confiou a ti, que não eras seu amigo, entre tantos amigos tinha, só ali no Quartier Latin. Como ficaram com inveja de ti. Dormíamos naquela cama estreita. Cedo levantavas para fazer a menage chez Madame Zurflux. Eu ficava te esperando para ir comer na Alliance Française. Tu te lembras? Tu não gostavas muito de carne de cavalo. Eu adorava. Tu me fotografavas com tua Yashica Mat. quantas fotos ainda tenho! Me querias como atriz. Um filme, nunca saído do papel ou da tua cabeça. O filme? Noite em Paris. Plínio Alberto, sabe? Goza com nossa cara. Sem começo nem fim porque a noite em Paris nunca amanhecia. Viu a gozação, nos dias de congresso? Que saco, quando mostro os ensaios. Eu nem chut! Mostro a todo mundo, só pra provocar, de quem eu gosto, você sabe. Até Escobar, hoje, amigo no feice, tem ciúmes. Arrependeu-se de te ter deixado comigo, quando voltou à Espanha de Franco.                                
                                  

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

TEMER JAMAIS













                                     


                                   


                                               Não, Horus, não é hora de ter medo. Aloisio não é leal a seus amigos, eles não te farão mal. Comerás o pão que o mafarrico amassou, cairás da tua escada, mas toma como lição, que lição a queda é, e com ela aprenderás que a ambição tem limites, mesmo que sejas Deus. Aqui, como em teu reino, finito e relativo é o poder. Só a mudança é permanente, não é assim, Heráclito? Assim espera Gandra de seu Portugal amado e a Milu dizendo atrás: Neste dia voltarei pra lá, quando cair Salazar. E digo: só deixo meu Cariri no último pau-de-arara. Aqui, passar uma chuva. A vida lá é ruim, quando não chove no chão, mas se chover dá de tudo, fartura tem de montão.  Temer? não temo não, voltar? quero voltar pro meu sertão. Agora, vestir uma camisa listrada e sair por aí, um canivete pro fumo e um pandeiro na mão, faço minha batucada, faço muita confusão, pois quem tem aquilo tem medo, pressão, não aguenta não. Meurimão, deixa de lera, sai daí, deste lugar, se tu sai com tuas pernas, inda podes trabaiar, se pelos outros enxotado, como é que tu vai ficá? Conselho sábio, o do povo, se principia a pensar. Eu tenho medo, quem não tem? Enraivecidos, quem controla? Morrem mil, mil e um nascem. Vida, viver é como água em pedra. Fura. 




Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

LA NOCHE TRISTE CHAPECOENSE


La Malinche -  Alfredo Ramos Martinez, 1930





                          A vida, as vezes, invade a arte, hoje, a morte a invadiu. Arte, pensam, imitação da vida. Não é assim, Aristóteles?Doce ilusão. Nem chega aos pés do real. De foice na mão, com seu traje preto, entrou, sem ser percebida, no avião da Chapecoense. Tudo ia bem até as faldas Medellin. Quanta luta para a Sul-Americana. A morte é escuridão, que dirá a caixa? Pane seca? Que alguém precipitou sobre as serras de Medellin  o Bae 146 da Lamia? Vejo que não vivo, durmo. Longa noche triste. A penúltima noite no Vieira. Guerra de travesseiros. Tudo ia ao ar, os padres à loucura. Sem castigo, o amanhã era a partida. La Noche Triste. Junto de sua Malinche teria chorado Cortez a perda da batalha para os astecas. La Malinche,  como muitos traidores, não chorou, porque a traição é própria dos sem lágrimas. Pouco se lhe importa. O trair é um êxtase só para quem trai, interdito aos demais, mesmo que se beneficia.
                  Heróis, onde andarão vocês? Tu, Danilo,  por que  tanto segurar a bola? Zé de Danié, o gato,  lá em Capela. A vitória pode nos levar à derrota. Como Pirro, choremos a vitória. Choremos a morte. A dor une, a alegria separa. A vitória só vem com a derrota.  Teu rival te quer campeão. Querem te ceder atletas, que não sejas rebaixado. O Racing faz homenagem, manifestam-se nas redes. O mundo se dilacera, o povo desunido, chora unido. Política desune, futebol une. Não me vanglorio da morte de ninguém, como vi pela morte do Fidel. Ela nos iguala, faz pensar. Salve Ximena Suárez, Salve Erwin Tumiri, Salve Rafael Henzel, Salve Follmann, Salve Neto, Salve Alan Ruschel vocês podem, sim, nos dizer que gosto tem a vida. Horus que carrega as chaves da vida e da morte vos reservou uma missão. Vão, daqui eu vejo tudo, e digam a quem quer tirar dos outros a vida, digam, vocês, a quem quer de si, tirar a própria vida, o quanto valiosa ela é, mas digam também a todos o quanto pequeninos sois para estarem aí digladiando uns com os outros no lugar de gozarem juntos a vida que lhes dei. Hoje perdoo todos meus inimigos, até tu, Aloisio Leal,  que me derrotastes na flor dos meus anos, derrota que foi vitória, tu não sabes,  também saíste naufragado. Todo vencedor traz uma veste rasgada. Não te vanglories tanto de tua vitória, sempre haverá quem conte a história que não contaste.  Não é, Madame Faure? Venceste-me por um prato de comida.  Estou aqui para contar a história que não é a tua. Se todo vencedor soubesse disto não diria, como Breno, Vae victis, ele próprio depois vencido. Não foi, Camilo?  Assim, vingado está, Didi, pensaste nisto, Quertezer?  KaRa de fome e sorriso nos olhos. Onde estarás agora, Dr. Baiúca, nos braços de Aloisio Leal, no plano celestial? Triste história de uma  justiça subserviente e acovardada. Que justiça que tu fazes para o roto e esmulambado?  Levem-na à ruína. Ressuscitem-na das cinzas.       
                      
                            


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve na livrarias.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O BANQUETE



Anubis - Guardião dos túmulos.








Vários prédios compunham um conjunto de estilo neoclássico alguns, barrocos outros. Pareciam serem todos construídos em estilo barroco, tendo sido remodelados depois.  Vi, em dezessete de julho de mil novecentos e oitenta oito, amplos jardins  separando-os.
Um deles, com vários pavimentos, abrigava uma espécie de cemitério ou panteão. Ornavam-no ciprestes em fileiras, longas, e, árvores diversas,  mangueiras, gameleiras tornando o ambiente tranquilo, mas sombrio e tenebroso. O ar, impuro, exalava cheiro de carne apodrecida. Insetos 
esvoaçavam por sobre mim, como  moscardos, monstros de cem olhos,  perseguindo a bela Io, paixão de Zeus.
Não sei se mais nojento o costume dos parsis, adoradores do fogo,  de não enterrarem seus mortos, preferindo deixá-los em altas torres para serem devorados por abutres. Não querem contaminar a terra. Mazda certamente é um deus moderno e ecológico.
Nos túmulos, bandejas de iguarias: garum (molho de peixe)  puls,  papa de cereais,   fava  ou  queijo, mel e  gema de ovo; bensone, bolo de farinha de trigo, leite, açúcar, manteiga, ovos, raspas de limão, fermento e sal, tinham sido depositadas como oferendas, que seriam oferecidas posteriormente aos convivas. Um túmulo me impressionou sobejamente. Ali jaz uma anciã. Um anjo desce tocando a trombeta do juízo final. Ela se levanta em prece  e num esforço descomunal suspende a laje que a prendera por longos anos e talvez séculos. Não me ocorrera que se tratava do túmulo da mãe de Le  Brun, mestre da escultura funerária.
Era dia de festa. Qual? Não me recordo. Me vi num salão amplo e multi-decorado. Havia uma mesa repleta de bandejas com guloseimas. Doces e iguarias das mais variadas qualidades e outras vinham sendo trazidas por garçons vestidos a rigor.
Mama, a zeladora d´oferendas não deixava que fossem tocadas e mandava as iguarias, que já tivessem cumprido sua função. Seriam saboreadas pelos visitantes.
Ajudava mamãe nesta labuta. Neste dia muita gente havia. Eu me apressava para trazer as bandejas para os convivas. A Multidão me atrapalhava nesta lida. E para não me atrasar, voava de um túmulo a outro, de um prédio a outro, passando por cima dos jardins. E como os prédios eram altos, tive de voar como um mupungu  para que não batesse nos tetos.
De repente me perdi. Não encontrei o prédio principal e já escurecia e precisava voltar ao panteão, queria comer da torta de chocolate vista naquele túmulo preto e branco, de  personalidade, por mim,   não sabida..
Voando, me distrai e dei numa igreja  repleta de gente,  ouvindo uma missa cantada por seminaristas de  batinas pretas e sobrepelizes de  alvura sem par. Missa dita no altar-mór. Fiquei parado, observando as funções, os rituais. Boquiaberto, ainda haviam pessoas religiosas.
O cântico, ali,  talvez  tocasse os presentes.  Um canto gregoriano de uma beleza simples, uníssona e contagiante. Pater noster, qui es in cælis, sanctificétur nomen tuum... Era como se tivesse voltando vários séculos no tempo. Senti como se todos estivessem suspensos no ar. Com a luz mortiça das velas, das lâmpadas elétricas escondidas nas cornijas, ou incrustadas em forma de velas em grandes castiçais ou em lustres pendentes do teto  transmitia uma atmosfera lúgubre, mágica e fantasmagórica, hipnotizava o crente e seu observador.
Andando, observava fiéis em sua oração. O barroco, o altar-mor e capelas laterais, estas, permitiam a cada um fazer  orações aos santos de sua devoção,  ou mesmo conversar baixinho, sem incomodar os demais.
Numa capela, uma mulher loira de olhos azuis, nem tanto loura, mas um pouco moura, segurava uma criança e parecia conversar com alguém atrás de uma cortina. Olhou-me com olhos de basilisco.  Não tens o poder de matar, pensei. Erraram o mais velhos. Inofensivo iguanídeo, não me importo  que tenhas teus olhos de feitiço. Vou para ti, mulher. Segura teu filho, não o deixes chorar.
Vestia um comprido vestido lilás,  à maneira grega, aberto em cada lado, deixando entrever o corpo quando em movimento. Parecia ser padre o homem com quem conversava. Era alto e bonito. Trocavam  furtivos gestos de ternura e suspendiam a criança, brincando. Olhar de ciúmes. Desejo traído pelos olhos. Quem não ama a aventura mesmo que a tema? De medo não me aproximei, mas quem há-de? Fitava-os disfarçadamente. Fingia interesse no altar, ricamente decorado com flores brancas, contrastando com o dourado do templo e o púrpura das cortinas pendentes do teto. Na capela ao lado, uma pequena audiência assistia a um sermão. Um padre hirto, barbudinho, Inspirando simpatia dizia sua homilia. “Considera-te já como morto. E, como se tu mesmo  foras outra  diferente  pessoa viva, põe-te a olhar para teu corpo defunto. Adverte como fica feio, pálido e desfigurado. Alguém de casa lhe cerra os olhos, aperta o queixo, estende os pés, compõe os braços e, amortalhado em um pobre lençol (que é o despojo que leva de todas as coisas deste mundo) o põe na casa sobre um pano negro, com luzes a uma e outra parte. Vêm os ministros da igreja, rezam o responso, tomam em peso o cadáver, que está mui inteiriçado, frio e pesado e com princípios de corrupção, e descem para o meter na tumba, despedindo-se dele os domésticos com algumas lágrimas, que brevemente se enxugam e para o defunto são totalmente inúteis. Caminham à igreja, aonde está prevenida uma cova, e amontoados a um e outro lado dela muitos ossos e muita terra que lança  de si o fartum dos mortos, de que costuma ser cama. Este espaçoso e ameno palácio onde há de morar o novo hospede, até que a trombeta de um Arcanjo o acorde e o mande levantar, para que dê conta e leve o prêmio ou pena do que serviu ou ofendeu a seu criador. Ali deixam cair o cadáver, ossos e terra por colchões, terra e ossos por cobertores. Começam a calçá-lo a golpes de enxada, põem-lhe uma  laje em cima; vão-se os circunstantes, uns a comer e beber, outros a rir ou contar novas, outros a tratar do seu negócio. E daí a poucos dias desapareceu até a memória do tal defunto, e ainda a mulher e filhos o nomeiam poucas vezes, e talvez para o praguejarem, se deixou pouco remédio
 Vês, alma minha, o que é o mundo? Vês o que é o corpo? Pois para que adoras no regalo e comodidade do teu corpo? Para que idolatras na estátua fantástica do mundo? À vista de tão horrendo espetáculo e desengano palpável, não me dirás de que serve desvelar-te por amontoar fazenda com inquietação da tua consciência, por crescer na honra, por sair com teu apetite? Onde está agora tudo que deu prazer e recreação a teus sentidos? Que proveito tirastes da vaidade e da malícia? Como és tão néscio, que com ofensa grave de Deus cativas a tua alma e o teu corpo, e todo o tempo e cuidado se te vai em acomodar, fomentar e defender? Não vês que é pó e bichos, horror e podridão? Não sabes que te não há de pagar esses obséquios senão com tormentos?”



Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.



domingo, 13 de novembro de 2016

O ENTERRO DOS ENVENENADOS















Começava a escurecer quando a caminho do Pelourinho, acompanhar  o enterro de pessoas envenenadas. Cerca de 50, entre jovens, adultos e crianças. Ruas apinhadas, carros, gente. Correm, indo e vindo sobraçando compras. Operários de macacão faziam instalações elétricas, construíam palcos sobre estruturas metálicas, zoeira. Semana de carnaval. Doze de março de dois mil.  Pensei até em ir pela Baixa dos Sapateiros, Não pegar engarrafamento, mas resolvi deixar o carro nos Barris e seguir a pé pela Avenida Sete. Na altura da Praça Castro Alves, que ainda não era totalmente do povo, muita  gente.  Teria muita  dificuldade em atravessá-la, mas tinha pressa porque estava  atrasado. Pensei, se eu subir a torre da Barroquinha poderia ter um bom ponto para alçar voo. Engano. O campanário está no mesmo nível da Chile, ou talvez mais baixa, por cima da qual  haveria de sobrevoar.  Mesmo assim, subi naquele Mibunge (assim a chamavam os negros de língua quibunda)  de lá, pulei, conseguindo um pequeno vôo até o inicio da Rua da Ajuda por onde tomei o caminho do Pelô. Claro que tive medo daquela rua. Quem não tem medo? Os travestis abordam. Não se sabe como responder. Se desagradá-los =, a violência é certa.  Se nada respondes, serás esnobe, está discriminando. Os sorriso pode ser um  escárnio. Mas, ao final, passei ileso, tendo de explicar, não ser  fumante, não tinha cigarros. O pelourinho, deo gratias. Os caixões do moribundos, numa rua atrás da Cantina da Lua. Um sobrado barroco em penúria secular.. A esta altura já tinha escurecido e a casa estava toda iluminada com velas, apesar de ter nela luz elétrica  como as demais.
Uma multidão esperava sair o enterro, mas tudo estava atrasado pois as pessoas envenenadas estavam demorando de morrer. Desenganados por médicos, curandeiros, babalorixás, yalorixás e os demais que se metem a curar os males da carne, esperavam resignados até morte chegar.  Esperavam  sentados no chão, em cadeiras, nos sofás. Outros por serem, talvez mais práticos, estavam esperando a morte já dentro dos caixões, conversando animadamente, matar o tempo. As pessoas  traziam comida e bebidas, tanto pros moribundos, quanto pros velantes. Chegando, fizeram questão de me dar um lugar seguro para descansar. Um quarto onde havia uma cama de casal, na qual já descansava alguém. Que não me incomodasse. Bastava deitar de valete. Não me incomodei realmente, tanto que nem deitei de valete, uma vez que a cama era muito larga e havia dois cobertores.
Dum quarto de meia-parede, ouvia os comentários sobre o acidente do envenenamento das pessoas e, claro, tinha medo, um inexplicável temor que se apoderava de mim, sem razão aparente. Falavam em indenizações, em vingança e mesmo em perdão do Cristo. Preces eram feitas, não pedindo a melhora dos condenados à morte, ou que morrendo  subissem ao céu. Pedia-se firmemente a morte, diziam, minorar seu sofrimento e o deles. O velório se tornava cada vez mais cansativo e as discussões cresciam. Há de se fazer este enterro logo;  Como enterrar, se eles ainda não morreram? Os próprios condenados alegavam já não agüentar mais esperar a morte. Um queria ser cremado, em lugar de enterrado, mas outro meio gaiato disse que preferia ser mesmo enterrado, porque queimado, o Senhor Deus ia ter um trabalho da zorra pra juntar as cinzas no dia da ressurreição.  Ninguém conseguiu segurar o riso, mas al fim todos acordaram  em  ir seguindo pro cemitério, era o tempo de eles  morrerem.
Começaram a retirar os caixões. Nova discórdia. Alguns queriam logo tampar os caixões,  outros discordavam  iriam sufocá-los e não podiam fazer isto. Alguns argumentavam,  eles iriam morrer de qualquer forma, pouco importa, seja por asfixia ou envenenados. Vão morrer, mas não se pode sufocá-los, seria desumano, além de se cometer  assassinato, pois não se pode antecipar a morte de ninguém, disse um legalista. Nova  discussão:  Os caixões não podem sair pela cabeça, devem sair pelos  pés. Mitos, medo, costumes, superstições.  Saíram por fim todos. Eu que,  durante todo aquele  tempo fingira dormir, chamei meu companheiro, temia ficar preso ali. Não posso me imaginar preso naquela casa ou em qualquer outro lugar, morreria mais depressa que os envenenados. Ele acordou assustado. Não poderíamos sair imediatamente. Pelo sim, pelo não, poderiam descobrir ser eu o culpado pelo  envenenamento daquelas pessoas. Ah, meu companheiro de cama sabia mais de mim, do que eu próprio. Eu não sabia qual a minha relação com aquele cortejo a caminho do cemitério. Pasmo, pedi que me explicasse o  acontecido, ele negou explicações. Não era o momento. Que então saísse sozinho, ver e sentir o ambiente, sondar a barra. Ele saiu e eu fiquei calçando meus sapatos. Apesar de não gostar de sapatos com cadarços,  estava com um sapato social preto, feito por  Waldemar, o mago dos sapatos, lá na Princesa Isabel. Baixinhos recorriam a ele,  sabia como ninguém, fazer sapatos. Fazia-os de todo jeito, de salto duplo, com  palmilha alta, escondendo a altura do sapato que o gajo  parecesse  mais alto.  Toda a Bahia lhe devia. Encomendas até do Sul e da Europa. No meu caso, ele aumentara de dez centímetros, assim parecia eu mais alto e elegante. Elegância que tinha um preço. Cansaço. O percurso do enterro coletivo devia atravessar o Terreiro de Jesus, a Praça da Sé, seguir pela Misericórdia, passar pela Praça Tomé de Souza, entrar na Rua Chile, descer a Praça Castro Alves, seguir pela Rua Carlos Gomes, Continuar na Senador Costa Pinto, passar pelos Aflitos, entrar na Avenida Sete, seguir até o Campo Grande, entrar na Rua Araújo Pinho, no Canela, entrar à esquerda na Rua Augusto Viana, passando em frente à Reitoria, descer a Padre Feijó, e por fim, subir a ladeira do Campo Santo, onde seriam enterradas aquelas pessoas. Com um percurso deste, não seria possível que já não  tivessem morrido e prontas para ser enterradas.
De por mim, como diz o povo, se os enterrava assim mesmo, tivessem morrido ou estivessem  vivo. Não já tinham os médicos  decidido que eles iam morrer? Umas horas a mais ou a menos não fazia diferença. Esta seara ninguém entra. Há uma verdadeira barreira aos que não fazem parte desta organização. Médicos, empresários da medicina, dos laboratórios farmacêuticos e  dos equipamentos médicos formam uma corrente tão forte que ninguém de fora consegue penetrar. Eles decidem tudo. Senhores da vida e da morte. Você sabe que com sua doença você passa a ser consumidor e está beneficiando o hospital com toda sua parafernália de equipamentos, médicos, enfermeiros, laboratórios farmacêuticos e fabricantes de equipamentos e material cirúrgico e, no entanto, você está ali mendigando, sem poder dizer uma palavra de indignação, por medo de ser deixado à sua sorte e  morrer e nada acontecer, porque Deus quis assim. O  cidadão ali deixa de ser um cidadão. Quando morre, a família ainda põe no jornal nota de agradecimento pelo esforço, espírito de cooperação e solidariedade de todos no tratamento daquele que o senhor foi servido de levar à sua glória. Que descanse em paz, (Alguém pode descansar sem paz?) e os demais que fiquem com os reais. Quem não sabe que o médico tem comissão sobre a receita que passa? E  sobre o material cirúrgico que usa? Quem não  sabe que os laboratórios impõem determinados remédios? Que os fabricantes de materiais cirúrgicos travam uma verdadeira guerra entre si para impor seu produto nos procedimentos médicos? Que fazem os poderes públicos? Absolutamente nada, porque quem deveria fiscalizar tem interesses ali dentro. É o mesmo que entregar o galinheiro à raposa, mandar o macaco tomar conta de um cacho de banana. A indústria do laranja está arraigada ali dentro e muitos são os verdadeiros donos de empresas que tem em seus contratos sociais simples  empregada doméstica, caseiros de um sítio, porteiros ou outro empregado da empresa. Pessoas que dão seu nome para criar um contrato social,  entregando toda sua vida aos verdadeiros donos, através de uma procuração com poderes absolutos para agirem em seu nome.




Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O MALEMBÁ






















Subia a Rua Oito de Dezembro, vindo da Rua Santa Rita de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. À esquerda, na altura da casa de Dr. Hermógenes, ou melhor, em frente à casa de Frank, existia uma frondosa gameleira branca na qual  eu comecei a escalar. Logo percebi que a  cada passo acima, a gameleira  se afundava. Insisti, mas tanto subia, tanto descia. Seu tronco já afundara pela metade.
Estava nesta lida quando surge um rapaz, bigode fino, um cabo-verde, cabelos negros como a asa da graúna, como dizia Alencar. Eu estava profanando a árvore, uma gameleira branca, um malembá sagrado, um irocô. Estava apenas escalando-a pra poder voar. Curiosos se achegaram, iniciando uma discussão sobre a sacralidade da árvore e minha capacidade de voar. Eu mesmo, por medo da multidão, passei a defender a árvore e sua sacralidade, enquanto uns me chamavam de impostor, de palhaço, um babaca, querendo aparecer. Só então, vi um ojá branco amarrado ao malembá, formando um laço e  restos de omalá, inhame, um pernil de carneiro, patas de cágado,  ajabó,  caruru, feijão fradinho,  deburu,  acaçá,  ebô e outras iguarias  em alguidares  espalhados pelo chão.  Eró Zaratembo.
O clima estava ficando tenso. Surge um senhor, de aspecto   ameaçador e conciliador, ao mesmo tempo, trazia .na mão um ixã. Era o Tatá de Inquice, pai do rapaz que falava comigo. Então percebi ser ali um terreiro e aquela árvore, um irocô. Moreno magro, bigodinho brilhante  e cabelos encaracolados,  trazia um sorriso nos seus olhos verdes. No andar, no trajar, um certo  ar de fidalguia e elegância. Calças de seda branca e casaco de seda verde, ornado com rendas amarelas nas bordas. Fez sinal para que nos calássemos, com tanta magia no olhar que a  contenda teve fim. Disse não estar ofendido pelo meu ato. Não fizera por mal. Piores, gente da casa,  profanadores dos ritos sagrados. Agradeci por aquelas palavras de sabedoria e pedi  permissão para mostrar a todos o que pretendia fazer, assentiu o doté.
Mas acabei deixando de lado o irocô e subi no  muro do Ilê de onde vi o despenhadeiro,  antepondo-se ao palacete Henriqueta Catarino. Abri meus braços, nem preciso dizer, voar sempre me trouxe de pavor, medo de não voar e passar decepção. Como saltar de paraquedas que não se abre. Lancei-me, entretanto, no espaço,  braços abertos no ar. Sacudi-os arriba, abaixo. Comecei alçar vôo. Puxava o  ar como se estivesse nadando. Os braços-asas. Viu a cajazeira, logo encostado ao muro do quintal do Dr. Hermógenes, a quinta do palacete, onde tantas vezes fora roubar frutas, incentivado por Clarisse, a babá dos meninos. Vi, em seguida,  o cemitério, não o dos ingleses, mas outro, a seu  lado. Passei a planar tranquilamente sobre árvores, campas e torres. Pousei, afinal sobre uma sepultura. Uma velha e uma jovem rezavam entre flores e velas. Assustaram-se com minha chegada. Abraçaram-se gritando uma pela outra. Mãe e filha. Nem adiantou pedir-lhes calma. Mais ansiosas ficaram. Profanador, gritaram.  Lá de cima,  palmas pelo meu feito. Elas não entenderam. Imprecavam contra mim e contra eles.  A jovem,  passou la mão num jarro e o atiçou contra mim. Pedras, paus. Pernas, pra que te quero? Pisando quase nos meus cascos  xingavam, gritavam. Saía fogo de suas bocas, ou era água que queimava. Trepei num túmulo mais alto. Tentei alçar vôo. Não consegui. Quem  me aplaudia lá de cima, passou a me vaiar. Alguns desceram a me perseguir no cemitério. Corria e corria e corria. Minhas calças caíram. Eu não tinha mais minhas calças. Com as mãos, escondia as vergonhas. Isto me impedia de correr mais depressa. Pega o Bruxo. Pega o necrófilo. Ele voa como bruxa. Ele voa sem bassoura. Lá em cima cresceu o movimento de gente. Vociferavam contra mim. Podia ver de longe,  Ruy Barbosa com seu bigode branco,  lunetas de aro fino, e gravata borboleta, cerrando os punhos, gritando. Réprobo,  Íncubo. Arimã. Anhangá do inferno. Sujeitinho pernóstico, até pra xingar vem ele com este linguajar tirado a clássico. Também pudera, um homem fora do seu tempo. Conhecida tudo do passado, menos do presente. De outro lado, cabelos revoltos, barba apocalíptica, atroava Glauber Rocha,  como se estivesse dirigindo uma cena de seus filmes. Corre porra. Abre os braços. Sobe naquela torre.  Voa porra. Voa.  Gritos de um louco que  me deixavam varrido.  Eu não sabia bem o que fazer. Castro Alves vendo aquela multidão,  cofiou o bigode, passou a mão pela vasta cabeleira,  começou a esganiçar: “E eu sei que vou morrer, dentro em  meu peito um mal terrível me devora a vida. E morro ó Deus! na aurora da existência. Adeus, vida! adeus glória! Amor! Anelos!”. A turba gozava meu infortúnio, como gozaram o incêndio do Mercado Modelo. Torres mouriscas se derretendo sob as línguas do fogo, tal como ardiam as pessoas sob o fogo da Santa Inquisição. (E como era santa).  Olhava ao redor. Uma árvore, precisava  subir, não havia, porque palmeiras, cajazeiras e ciprestes  eram difíceis de  se escalar. Na azáfama de me livrar daquela agonia, entrei na igreja daquele santo campo, onde o padre Antonio Vieira, o paiaçu dos Tupinambás, dizia, ante um féretro sobre a essa, uma missa perante uma assistência chorosa e triste. Alvoroço, com minha presença. Um salteador, pensaram. Calma gente, calma. Me ajoelhei num banco, tentando fazer uma oração, tentando só, porque nenhuma passava das primeiras frases. 


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

EM BUSCA DE UM TEMA OU UM TEMA À PROCURA DE UM AUTOR


















Não se sabe ou não me lembro bem como tudo começou. Lembro-me agora de estar numa ampla sala de um tribunal com alguns juízes ou desembargadores que se reuniriam pra julgar um processo. Era um caso rumoroso, do qual a cidade toda falava. Juro que não me recordo qual a questão, mas prometo que se me lembrar, antes de terminar este relato, eu o direi, pois, embora não seja fominha de realismo, como pretendem os jovens escritores, há certas curiosidades que o leitor gostaria de saber e não se pode escrever sem se satisfazer um mínimo ao leitor,  pena de ser jogado no lixo, na pubele, como dizem os franceses, (eles escrevem poubele), antes mesmo de se vencer o primeiro capítulo. O certo é que o tribunal se instalava em uma ala de um prédio adonde funcionava também um clube chique, de elite. O desembargador sorteado relator do processo fazia parte da oposição e se esperava que se julgasse a contenda contra os interesses do governo, pois muitos já estavam propensos a julgar com a oposição, a despeito de não se poder contar com maioria certa. Conhecia os desembargadores. Estava lá o Lombroso, professor de Direito, Jacaré, de Direito Processual Penal e  Branquinho. Ah, o Branquinho, foi o primeiro desembargador, de quem não fui aluno, que tive coragem de me aproximar profissionalmente. Obra do genro, meu colega de sala.  Jovens advogados  em inicio de carreira gostam de trocar ideias. Primeiras vitórias,  peripécias. Eu tive mil ou não sei quantas. Encontrei Renan nos corredores do Forum. Estou com um Habeas-corpus escabroso, tenho de ganhar. Quem é o relator? Branquinho. Branquinho? É meu sogro. Não diga, como faço pa falar com ele? O velho gosta de um uisquinho. Deu-me endereço e data de aniversário. Comprei  um famoso  uísque.  Fui, afoitamente, bater à sua porta. Coragem e determinação. Surpreso, vi que estava só, dei-lhe parabéns e entreguei a garrafa. Uma pequena lembrança.  Assim tive anulado  o processo. Bela iniciação.  O fulano  matara  a mulher, fugindo, processado em revelia, preso anos depois seria julgado, em processo nulo, por que não tivera defesa. Em Riachão do Jacuípe a juíza nomeara-lhe defensor um leigo.  Coitado,  não fez defesa alguma e só faltou pedir a condenação do réu. Anulei o processo manco de defesa, mas não soltei o preso. O desembargador entendeu, e o tribunal concordou, ser possível alguém estar preso com processo nulo. Justiça brasileira. E falam em democracia. Sem justiça não há democracia. Uma vela a Deus outra ao Diabo. Diabo se escreve com letra maiúscula? Boa pergunta, tadim do diabo, nem  letra maiúscula lhe querem dar. Mas eu insisto em escrever com letra maiúscula, afinal Deus e Diabo são tudo igual, já dizia Shakespeare: "O bem e o mal é tudo igual". Mas, voltemos ao nosso relato. Muita gente começou a aparecer e a pressionar os julgadores. Os oposicionistas fantasiados, alguns  até com máscaras por não serem reconhecidos. Enormes, de forma e cores diversas. O  Bumba-meu-boi de Capela. A nega Catirina, nunca se sabia quem era, corria, chicote na mão, atrás da gente. Também a  burrinha a dar  coices e cabriolas,  enquanto o boi chifrava a meninada.
O meu boi morreu
 Vamos enterrar
O dinheiro dele
É  pra nós gastar.

                        Os violões de Emiliano, de Lilinha de Zé Luis,  o pandeiro de Pedro de Zé de Liodoro, o prato e o zabumba, acompanhavam as cantigas. Ás vezes, até a sanfona de Elias do Pé do Morro ou de Vaguinho das Pintadas. Este, migrado pra Brasilia,  virou crente, dizem, e puxa  seu fole agora só par as glórias do Senhor Jesus. Estará seu Jesus de Zé do Martelo  ligando pra suas  sanfonadas?  Mascarados de verdade,  só mesmo em Feira de Santana o micarêta. Vestidos de mulher, mexiam com todos e faziam medo às crianças.  Notre Dame de Paris, gárgulas e quimeras levam-me de volta a Capela, a Feira de Santana. A mula do padre. Sem cabeça, rodeava as casas assombrando mulheres, crianças e velhos. Pois quando se está velho, por se  estar perto da morte, se tem medo de tudo, ou não se tem medo de mais nada. Trotava pelas ruas, relinchando e chorando, ora mula, ora mulher. O corpo lá do padre lhe roubou a paz, agora sofre, até encontrar alguém de coragem para tirar os freios de sua boca,  perder o encanto e voltar a ser mulher. Quem tem coragem? Longe o intento daqueles. Quero dizer, os mascarados do julgamento. Não queriam fazer troça de ninguém, e muito menos fazer medo, queriam apenas não serem reconhecidos.  Os governistas, de cara lisa e com petulância, faziam seu lobby abertamente. Lobby?  Disse? Que  dirão os puristas quando lerem este anedota? Não há  substituto, em português deste anglicismo? Ou americanismo? Sim, os americanos inventaram esta profissão. Lobby:  varanda, vestíbulo, átrio ou adro,  antecâmara,  sala de espera, passou a designar uma pessoa ou um grupo a Influenciar o poder, fazendo aprovar medidas de interesses de alguém ou de uma classe. Sentavam-se no lobby, esperando, espera que é pressão.  A arte de corromper, tão cara aos norte-americanos;  vendem até a própria mãe.  Vamos amenizar, pela felicidade do vernáculo, vamos aportuguesar. Lobe e lobistas, os fazedores do  lobe. Sim. Havia ali lobistas tentando convencer os julgadores a julgar o processo, no interesse do governo. Não, não eram lobistas os oposicionistas. Não tinham dinheiro nem intenção de corromper os julgadores. Limitavam-se a se exibirem, caladas,  nos corredores e salas do prédio, na doce esperança de um julgamento contra o governo. Apelavam apenas aos sentimentos de humanidade,  e não ofereciam mais do que o respeito pelo seu voto. Tímidas pancartas anunciavam. Por um judiciário independente. Ministro nomeado, ministro endividado. Uma era mais afoita que todas: Governador desamarre os cabrestos. Eu me sentia um pato fora d´água.  Ou como um ojé visitado pelos eguns, com seus opás multicoloridos e gigantes. Um ojé, estarrecido e temente da força dos egunguns a evitar, a todo custo, tocar  suas roupas sagradas e meneiando o ixam com cuidado e maestria, par afugentar malefícios e morte. Clube e Tribunal como almas gêmeas, de um se via o outro.  Uma passagem, um túnel de vidro, como de vidro eram as fachadas dos dois, um a outro. A toga enxovalhada era deixada sobre os escrínios e o magistrado, sátiro intogado,  passava ao clube sorver as delícias de Baco e Venus. Trânsito no túnel, nos prédios, empregados portando paneis, documentos,  jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas,  nervosos, à busca de notícias. Suado passa Ataíde, surrado passa o terno eterno, cabeça  inclinada para esquerda,  como se o pescoço fora de lâminas bimetálicas aquecidas, ou sofresse do conatus recendendi de Descartes que jogava sua cabeça  para fora do centro. Uma figura do cinema baiano. Estava, sempre,  em toda parte, em todo evento de arte, principalmente se houvesse um coquetel, onde pudesse se afundar no vinho e comer a 0800 as iguarias oferecidas, economizando  janta e, talvez, o desjejum e almoço. Na cabeça, dizia, vários filmes à procura de um produtor, aliás, esta não era uma particularidade sua,  todos que se metiam a fazer cinema na Bahia alardeavam a mesma coisa. Idéias, argumentos e roteiros não faltam, o que falta é produtor. Não tiveram a mesma sorte ou o mesmo talento que Glauber Rocha. Este, um  cineasta louco que morreu um pouco por fome, um pouco por maltrato. Fez mais fama na Europa que no Brasil. Sua mãe corre até hoje atrás dos governantes na vã tentativa de criar a Casa Glauber, um museu onde pudesse ser exposto tudo o que produziu ou lhe tivesse pertencido ou fora por ele utilizado.  Em vão.  Até a casa onde morou, no Barris, onde a mãe tinha uma pensão, foi demolida, dando lugar a uma clínica, onde os médicos cegam seus pacientes a cada consulta.  Em frente aos dois, a praia, o mar. Imenso, azulverdeazulcinzento. Esbravejante, revolto, de espumas flutuantes, porque era março, dias de Marte. É pau. É pedra. Será verdade mesmo que Xerxes mandara chibatear o mar por ter engolido seu cavalo?  Haveria muito que apanhar pelos pescadores que já engoliu. 


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

sábado, 11 de junho de 2016

CRIME SEM CASTIGO



Salvador, 20 de janeiro de 2012










Caro Amigo,

Corroem-me ganas de te contar segredos presos em mim, desde aquela noite. Coragem? Aqui chegou e morreu. Receios. Falaste,  um dia, de indenizatórias. Parentes de vítimas assassinadas poderiam ter reparação pela morte. Com certeza, pagar pela morte de alguém é mais penoso do que ser preso, porque se sabe que ninguém cumpre o total da pena e mais cedo ou mais tarde, se consegue a liberdade, mas se mexe no bolso...
Você não sabe o quanto tenho sofrido em manter este segredo dentro de mim, sem que possa partilhar nem com uma pessoa que tenho como meu maior amigo. Foram noites e noites sem dormir, sem alguém a quem  confiar. Sempre confiei em você, mas você teve uma paquera com ela. Tinha medo, e além disso, você foi sumindo e, claro,  tudo diminui com a distancia.  Tinha medo de se descobrir tudo, nunca se sabe as voltas que o mundo dá.
Sabia que o crime prescreveria ogano e hoje li no jornal sobre a prescrição. Este dia era esperado por nós, na mais absoluta angustia. Esta noite, como em inúmeras outras,  estive pensando. O crime já prescreveu, por que não te contar tudo? Ninguém vai pagar mais por coisa alguma. Por isto resolvi te contar o que aconteceu. Você me havia dito que tinha vontade de escrever sobre o assunto, mas você mesmo tinha medo. Vou te contar tudo, não sei escrever como você, cabe-lhe fazer de meus escritos o que  bem entender.  Deixar do jeito que está, fazer um romance, um conto policial, um estudo de criminologia, de psicologia, enfim o que quiser. Faça de conta que tudo foi escrito por você, eu não quero nem saber de autoria e muito menos de direitos autorais. Basta, claro que inda tenho medo, mas seja lá o que Deus quiser.
Você não sabe, rolou muita coisa antes que se jogasse o corpo dela nas dunas. Hoje não me lembro de certos detalhes, mas vou fazer o possível para me recordar, com a ajuda de alguns recortes de jornais que guardei comigo a sete chaves, sem que ninguém soubesse,  e, a despeito das mil mudanças que fiz, ainda os tenho sob minha guarda.
Naquela noite, estava como que embriagado, porque não me embriago nunca, mas nem sei mesmo, se não  completamente bêbado, por  ter consentido em se fazer tanta miséria sobre uma pessoa. Hoje me sinto perplexo e enojado. Posso agora refletir o que não poderia ter também acontecido com você, quando, ainda não familiarizado com as maldades do homem, em Paris, se juntava a  jovens  do mundo inteiro,   de idéias  estapafúrdias, de formação as mais diversas, e até mesmo contrária da sua, como você me dizia, nos longos bate-papos que tinhamos, e se entregavam,  às noitadas, ao prazer próprio da juventude, sem medo algum, porque o medo não é sentimento que faça morada no jovem, ou mesmo o frequente amiúde.
Você poderia ter passado pelo que passei, e o que é pior, em país estrangeiro, onde fatalmente a aplicação da lei é mais rigorosa do que aqui. Porque, juro, nada fiz pela prescrição, foi  ineficiência e inércia da policia e da própria justiça,  autoridades e funcionários, preocupados unicamente com o contra-cheque do fim do mês e as "custas por fora", o CPF,  complementar da féria do mês que o judiciário o poder mais corrupto da república.
Gastei o mínimo, muito embora outros tenham gastado quantia até vultosa pra matar o processo, fazer chegar a este fim. Em outros países todos nós teríamos um mínimo de remorso, certamente alguém de nós, arrependido, já teria se apresentado à justiça e confessado e ai todos estaríamos perdidos.  Fui eu que matei aquela mulher. Mas nós somos cara de pau. O brasileiro morre negando, dizendo  mentiras. É incapaz de reconhecer o próprio erro. Gostaria de saber porquê somos assim. Admira-me quando vejo na tevê,   em outros países,  acusados de qualquer crime confessarem:  "Eu sou culpado". Uns até se matam perante as câmaras, como fez Robert "Budd" Dwyer, dando  um tiro na boca, numa entrevista  coletiva, por ter sido  acusado de receber, como tesoureiro do estado, US$ 300 mil, numa barganha. Não confessou, mas fez um discurso digno de um grande tribuno.
Agradeço a Deus por meus 47 anos de desafios, experiências estimulantes, momentos felizes, esposa e filhos maravilhosos. Sem razão, minha vida virou. Pessoas  me telefonam e escrevem desesperadas. Sabem que sou inocente e quero ajudar.  Num país que se vangloria de ser uma democracia, nada pode fazer a plateia  afim de evitar minha punição  por um crime que todos  sabem que  não cometi.
Malcom Muir é um juiz conhecido por sentenças medievais. Enfrento, na prisão,  pena máxima de 55 anos e multa de  300 mil dólares,  por ser inocente. Aqui os juízes não têm pejo de alardear para a imprensa o que bem entendem, fez Muir.  “Sentiu-se mal”  ao culpar-me, mas não  se sentiu mal em dizer que vai me condenar, esquecendo-se dos demais envolvidos. Estes sabem da minha inocência, estou como bode expiatório, não passando tudo isto  de perseguição política. Isto é  um gulag americano.
Acreditam em mim, peço  a amizade que sempre tive e rezem por minha família, trabalhem por um verdadeiro sistema judicial  nos Estados Unidos, esforcem-se pela minha reabilitação.  Que  nossas famílias não sejam maculadas  por esta injustiça contra mim.
A justiça e a verdade hão de prevalecer, e,  inocentado,  devotaremos o resto de nossas vidas ao trabalho para criar um sistema de justiça justa  nos Estados Unidos. O veredito de culpa da culpa presumível impera, mas nossa luta irá mudar um dia o nosso sistema legal.

Repentinamente interrompeu o discurso, tirou de um envelope  um revolver e atirou na própria boca; Correria na estúdio, as câmeras registrando  sua queda a jorrar  sangue pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos. Dantesco? Trágico? Mas a pura realidade, um espetáculo realidade, como nunca se viu antes.












Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.





quarta-feira, 4 de maio de 2016

A MORADA















              Enquanto se remoía no salão as ideias mais estapafúrdias,  Dá, saiu a respirar, no quintal, um pouco abandonado do sobrado.  Algumas  ervas estavam cortadas por ela que pastava e comia a ração  diária. Um cocho de comida, outro d´água. Estava deitada ruminando, de ubre túrgido. Ele a tocou, em cada teta.  Ela pareceu gostar,  túrgido também ficou.  Ao repuxo das tetas, branco leite esguichou cálido sobre suas mãos, umedecendo-as delicadamente. Ouvia-se o burburinho, mas não se podia distinguir vozes. A mão se insinuava entre as tetas. Um fogaréu tomou conta do corpo. Maravilhado. Quanto tempo, mesmo presentes corpos lindos, não acontecia. Perder a oportunidade, não podia, nem devia, apenas cuidar. Não ser pegado nesta função zoofílica. Ânsia e medo de denunciar sua parafilia. A mão nas tetas escorregava lentamente até a xiranha intumescida e quente. Suavemente o vai e vem e o balido suspirado misturado às vozes vindas das varandas. Cuidar, que venha logo, que não venha  um curioso atrapalhar. Jogar sal no fogo espantar o azar. Onde está o fogo? Cadê o sal? Se sair daqui amolece, e adeus saudade. Melhor continuar, mesmo que arriscado. Um friozinho bateu no espinhaço, quando chegou à copa beber água. Cantarolava uma canção não quero ser carneiro nem a ovelha tosquiada do peão.  Vozes, vozes se misturam ao grito. Horus, vai é tarde, horas de te recolheres à tua morada. Uma mulher divinal  apareceu, seu rosto transbordava alegria, trazia na cabeça um disco solar, ornado de dois chifres em forma de lira, seu corpo esguio era-o de mulher e  de uma vaca, pintada de estrelas. Horus, se aninhou no seu colo e adormeceu.


sexta-feira, 22 de abril de 2016

ULTIMO SONO















Ouviam-se apenas os estalidos das folhas crestadas pelo sol. Caiam retorcidas sobre o chão quente e endurecido. Nem cigarras, nem pássaros, nem farfalhar de folhas. Não havia. Tudo era plano, quieto e cortado por numerosos caminhos que se cruzavam e não levavam a lugar algum.
Caminhava, por caminhar. Lá e cá, mandacarus abriam seus braços espinhosos. E deitavam sua magra sombra sobre a areia esturricada. Gravatás, xique-xiques e mancambiras ornavam a terra quente e pedregosa. Caminhava. E vi seu corpo moreno estendido ao longo de uma vereda.
Sob o céu azul, inúmeros pontos negros ensombravam o chão, outros pousavam simplesmente sobre galhos de mato seco. Angicos, sumarentas quixabeiras e sempre verdes juazeiros. A boca entreaberta deixava adivinhar pedaços de carne sujos de sangue coagulado. Outros, arrastavam-se pela areia carregando a carne que era sua. Alguns dormiam a sesta, após saciarem-se do banquete que lhe fora oferecido.
Seu corpo moreno. Seus olhos, antes feiticeiros, travessos, eram dois buracos negros que levavam não se sabe aonde. Seus seios. Pequenos, sensíveis - quanto eu os afagara! – agora, assemelhavam-se a dois pequenos formigueiros povoados por larvas e vermes hediondos.
Seus lábios. Antes doces e suaves, tinham o gosto de sangue putrefacto.  O corpo todo, antes, repleto de graciosas curvas sacudidas por vibrações eletrizantes, deixava antever, aqui e ali, por entre as chagas supuradas, toda sua conformação óssea.
O monte de Vênus, onde se escondiam supremas delicias, era uma cratera imunda visitada por moscas, mosquitos e aves de rapina. Estas, apoderavam-se, de quando em quando, de seu corpo, de sua carne, indo ao depois  brigar ao longe pelo maior bocado.
Eu me acerquei cambaleante de minha amada. Exalava um fétido ar que entrava em mim,  provocando-me náuseas e vômitos, como  se tivesse bebido todas as adegas do mundo.
Fiz-me forte e me acerquei mais ainda de seu corpo. E minhas pernas dobraram-se. Meus joelhos sangraram o solo que o sol queimava. Com o estrépito de meu corpo sobre o chão, afugentaram-se algumas aves que insistiam e aproveitavam-se dos últimos bocados de minha amada. Planaram preguiçosamente, pousando aos poucos  em mandacarus de braços abertos.
Meus olhos regaram  o esturricado  chão tropical. Meus braços abriram-se e minha boca. Triste foi minha voz não encontrar eco. Ela sabia que eu amava sua voz. Mais triste ainda foi não ver o seu sorriso, nem ouvir os seus gemidos. Os mais belos.
E ali. – Eu – à vista de seus últimos e mais fiéis amigos,  realizei o meu derradeiro e interminável ato de amor. E abraçado aos seus restos, fui-me apoderando de uma sonolência tranqüila e galopante. E fui dormindo. Fui dormindo. Dormindo. E dormi. Meu ultimo, mais sereno e infinito sono.
Caminheiro que viajas a lugar nenhum,
Quando passares, por aqui,
Apanha um lenho qualquer e nele inscreve:
Aqui jaz um homem que amou
E sua amada.




(Publicado com pseudônimo El Carmo na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança - Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).
Na Coletânea de Contos – Ed.  Scortecci, 2009, São Paulo-SP. Pseudônimo El Carmo.
In,  http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br


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quarta-feira, 20 de abril de 2016

E TU SILENCIOSA, APENAS RIAS

















           Porque sou feio tu nem sabes que existo. Porque sou tão pequeno, tu nem me vês, quando te olho. Existo Cristina. Desde o dia em que te vi na capa daquela revista. És alegre, e, no entanto, tens os olhos sensualmente tristes.
          Segui teus passos apreensivamente e vi-te deitada sobre o feno. Tu não te lembras. Corrias vaporosa, talvez, os lugares chique do mundo, quando te tomei pelo braço e te trouxe a meu quarto. Pus u’a música, deliciosamente sensual, na vitrola, perfumei-me com essência de jasmim e corri prus teus braços. Tinhas uma camisola branca com rendinhas amarelas. Olhavas par o teto, pensativa, com a mão direita sob a nuca. Com a esquerda, guarnecias a camisola, talvez por resquícios de pudor. E fiquei minutos em pé a te olhar. Teus cabelos negros. Teus olhos castanhos. Tua boca sempre entreaberta. Eu me lembro. A camisola jazia entre tuas pernas, formando um lindo triângulo. Pairava um cheiro de flores silvestres. Tu não dizias palavra. Parecias estar gostando. Parecias não estar gostando.
          Nu. Eu te olhava. A mão começou a acariciar-me. A esquerda. A direita. Tocava meu rosto. Meu peito. Meu umbigo. Descia por minhas pernas. As unhas faziam cócegas gostosas e engraçadas. Os dedos se enfiavam docemente entre os pelos. Meus olhos se enchiam d’água. Minha boca ressecava. Meus gemidos não te assustavam. Mas eu me recordo. Eram estranhos. Dolorosos. Solitários.
          Às vezes, tu viravas o rosto tristemente e paravas meu movimento. Punhas a cabeça sobre o braço e quedavas pensativa. Descobri um angulo agudo nos teus braços, por onde tu mostravas os teus seios de pontas vermelhas e eriçadas.
Eu recomeçava o jogo. Tinha passado um creme nas mãos par amaciar. Agora me sentia melhor. Te disse que gostaria de ser bailarino, porque acho que um bailarino sabe mais fazer amor. Te prometi fazer um poema inspirado em ti. Talvez tenhas esquecido ou nem saibas disto, mas demoramos mais de duas horas no jogo do amor.
          Tu me prometestes um postal de Roma. Tu me pedias para falar. Falar. Falar. Porque gostavas de ouvir meu falar brasileiro. Eu achava sensual teu falar italiano.
          Eu te coloquei entre minhas pernas e tu gritastes, que estava te amassando. Tinha esquecido a tua fragilidade. Que ânsia. Já eram três horas da manhã e eu não estava cansado, apesar de ter acabado de chegar de longa viagem de ônibus. E pensar que no dia seguinte teria de fazer uma prova às oito na faculdade.
          Eu te expliquei que vivo uma vida atribulada, morando no interior e estudando na Capital. Além do mais, tenho meus problemas financeiros, pois inda este mês, tive dois títulos protestados pelo banco, por falta de pagamento. Que sou bom profissional, porém, ainda não tenho o reconhecimento  público, e que nesta profissão, está mais em jogo os interesses políticos e econômicos do que mesmo a capacidade profissional do indivíduo. E que se fosse um rapagão,  irresponsável,  brincalhão e burro, mais sucesso teria do que sendo cerebral. O jogo do amor se tornava extenuante e demorado. Outras vezes, mal começava, chegava ao orgasmo. Sem graça. Insosso,  egoísta.
          Contigo talvez tenha sido inibição. É um sonho louco ter-te em meus braços, na minha cama, quando sei que todos os homens do mundo te desejam. Tu não te recordas, mas foi preciso repetir o disco várias vezes. Ouvia-se ao longe o latido de cães e a zoada dos autos na avenida. Eu não sabia mais se os latidos ali eram do Animals Dogs de Pink Floyd ou de cães perambulando na madrugada. How  I wish you were here. Chorava a guitarra, cortando minha carne, rasgando minh´alma, chorava eu. Cansado estava. A mão direita não mais suportava movimento algum. Estava disperso. Acendia a luz. Apagava a luz. Olhava tua imagem. Concentrava-me. Em ti. Me lembrava de cenas vistas na infância, algumas das quais eu participara ativamente. Um casal de cachorros. Uma jumenta. Gatos miando no telhado. Os gritos lancinantes de uma porca. O dia em que peguei Terezinha debaixo de um pé de quixaba.
          Não conseguia. Estava molhado de suor. E ia desistir. Me olhavas tão meigamente triste. Lembras-te? Amarrotei teus lábios, teu pescoço, teus seios, teu corpo. Um frêmito perpassou-me todo o corpo. Como uma navalha. Veio do mais dentro de mim um líquido. Cortante. Inundando nossos corpos. Lacerando nossa carne. O perfume do amor invadiu o quarto e a música. Gritei um grito de prazer e dor.
          E tu silenciosa apenas rias.
          E tu silenciosa apenas rias.
          O riso moreno de teus olhos castanhos.
          O sorriso. O mistério da madona.
          Me vi.
          Só.
          As mãos.  Meu corpo. Teu corpo. Umedecidos.
          Enxuguei-me com tua roupa. Tu te lembras? Fui ao banheiro e joguei tuas roupas na cesta de lixo.
           Tu te lembras?



(Publicado na Coletânea GOTA D´ÁGUA, Ed. CONTEMP/GALDEN’s, 1990, Salvador).


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.