Era uma construção bem
antiga, onde se encontrava Inicialmente. Não há como descrevê-la por inteiro.
As paredes eram de pedra, enormes, retangulares, sobrepostas sem qualquer outro
material que as sustentasse. Um corredor grande e amplo dava para uma esplanada
maior ainda. Ele seguiu este corredor, ao que parece com outras pessoas. Vê um vasto mercado a céu aberto. Tecidos, joias, bois, vacas, cavalos,
camelos, animais, objetos diversos. Andou sobre o muro observando
tudo aquilo. Desceu a um curral de gado. Muito gado branco azulado de chifres em forma de lira. Guzerá. Um boi se enfezou e arremeteu contra ele. Foi rápido, pulou a cerca e subiu no
muro. Mais na frente, um cavalo, cujo adestrador tentava mostrá-lo aos
comerciantes. Mercavam-se preços, davam-se lances. O cavalo se lançou sobre
ele. Muito destro, saltou novamente
sobre o muro e saiu correndo, buscar um lugar baixo, eis que todo o muro eram
alto, para se atirar fora dali. Quadrada, grande, imensa a esplanada com
suas paredes cobertas de limo, aumentado nos seus quatro cantos onde havia caleiras. Teve de contorna-la toda para encontrar um local mais
baixo que pudesse pular sem se machucar. Chegando ao canto do lado leste,
jogou-se lá de cima e caiu sobre um lamaçal. Tentou levantar-se, não conseguiu,
estava grudado à lama. Gritava por socorro, ninguém lhe ouvia, pela algazarra
da feira e dos pregões, ninguém deve ter percebido quando se jogou muro abaixo,
ninguém lhe deu valimento. Hora de morrer, calma, não posso perder a calma. Manter-me tranquilo, como no Farol da Barra. Quase afogado, a calma me salvou. Como areia movediça, mais me mexo, mais
me afundo. Sempre encontrei uma solução
para tudo, não é agora que vou me deixar morrer. Mais forte do que eu, sou eu.
Agora é pensar, a razão há de vencer, não juízo e sentimentos juntos. Aguenta
coração, ajuda tua irmã. Entender o dentro e o fora. Dupla luta. O mundo ao
redor, imenso, ínfima pedra lançada ao atoleiro. Dentro de si. Criança
escanchada na mãe, enquanto ela procurava
a chave no telhado, no chão, para melhor
procurar. O galo investe contra ele. Esporões no ar quase roçando os olhos. A
mãe contra o galo com o rebenque de espantar bichos, preso ao pulso. Minutos, eternidade, horas, minutos. Na casa de farinha,
vamos trabalhar meu boi, conserto de roda, olha este menino ai, facão no olho fere, vê Nanã nas poças, colhe
folhas de hortelã. Curar olho ferido. Pai fugindo de casa, São Paulo trabalhar. A irmã comeu jaca. Febre, delírio, do tifo. Caroço
e casca, xá do bom, receitou a
rezadeira, curou. Chega a Capela, cabeçote de Pedrão. Pedrinho trazia a irmã. vê. A carnaúba. Obra de Joaquim Machado. A escola marchando em
torno dela. Não, não vai morrer ali como um porco atolado na lama. Silêncio
profundo. Não mais pensar em nada. Em si, nesta hora de aflição. Todas as
forças aqui dentro, todas as forças do universo. Seu corpo começa a
enrijecer-se, a esquentar, como em febre. O mundo em torno de
si. O dono do mundo. Posso e te ordeno. Venham sobre mim, uma só força façamos. O mundo roda, medo, mas firme. Como um Deus saído do fundo da terra,
um jato d´água lhe atinge com força e ele foi-se desligando do l charco e
jogado ladeira abaixo, como uma pedra rolando. No fim da ladeira, um beco, a
água empurrando-o até uma praça, nunca dantes vista, humildes
casas de telhas e beirais, azuis, verdes, brancas, amarelas. Pessoas corriam para
um lado para outro, perdidas. Uns
tentavam se abrigar na Igreja Matriz, outros fugiam em direção ao mato. Ninguém
sabia o porquê. Corriam e corriam ou por querer ou porque empurrados pela
multidão. Também ele saiu em disparada. Chegaram
a uma grande área aberta, um campo de gramíneas, pasto para animais, talvez. Extenuado,
caiu e a multidão, como o estouro da boiada,
atropelando-o. Por mais que tentasse se levantar e correr, não conseguia, as
pernas lhe pesavam e era como se houvesse
alguma coisa segurando-o por baixo, pelas pernas. Percebeu que as
pessoas não o viam, porque passavam por cima dele sem se desviarem. Neste
momento, caiu uma chuva, ao lado, viu uma
lona amarela, pegou-a e se cobriu. Algumas pessoas suspenderam a lona, mas
ainda assim pareciam não vê-lo. Falou, gritou fez gestos, tudo para que o
vissem, em vão, ninguém o via. Não, não pode ser possível, isto é um sonho.
Tentou, então, acordar-se, não conseguiu. Sonhar acordado, pode ser bom, mas
aqui é pesadelo. Quantas vezes sonhou sonhando? Quantos sonhos interrompidos e
continuados a seguir? Quantos com a
mesma pessoa, conhecida só de sonhos? Sonhos dos sonhos, lembrando-se de já ter sonhado
antes. Com um esforço muito grande e safanão no ar, acordou, mas não pode levantar-se da cama,
algo o sustinha ali. Sentiu puxarem-lhe a coberta, não era ninguém, uma força
invisível fê-la voar para o alto e entrar em uma argola que se desfez. Gritou. Mamãe, mamãe, esticando o braço para ela. Veja aquilo, Veja aquilo. Aí sim,
viu que estava de novo sonhando. De vez
acordou. O telemóvel marcava seis horas
e cinquenta da manhã do dia vinte de dezembro de dois mil e treze (Pois o mundo
não acabou em 2000) não havia galo a cantar, nem galinhas a cocoricar, nem cujubim
para chamar o dia mas outros pássaros no pequeno bosque da casa de frente a seu
prédio chilreavam alegremente anunciando o novo dia. D´outro lado, na varanda, suas plantas recebiam os
primeiros raios do sol. Coaraci alumiando o mundo. Os primeiros automóveis
deslizavam no asfalto húmido pela garoa noturna. Ouvia-se o ruído de um liquidificador vindo
de um dos apartamentos. Suave soava o elevador no sobe e desce em sua caixa. Primeiros
sons da cidade despertando de seu sono. Uma ambulância passava, sua sirena emitindo ondas sonoras em frequência para si desconhecida, mas lhe mostrava o caminho de
viver. Gozar o dia, o amanhã ninguém sabe.