Começava
a escurecer quando a caminho do Pelourinho, acompanhar o enterro de pessoas envenenadas. Cerca de
50, entre jovens, adultos e crianças. Ruas apinhadas, carros, gente. Correm, indo e vindo sobraçando compras. Operários de macacão faziam instalações elétricas, construíam palcos sobre estruturas
metálicas, zoeira. Semana de carnaval. Doze de março de dois mil. Pensei até em ir pela Baixa dos Sapateiros, Não
pegar engarrafamento, mas resolvi deixar o carro nos Barris e seguir a pé pela
Avenida Sete. Na altura da Praça Castro Alves, que ainda não era totalmente do
povo, muita gente. Teria muita
dificuldade em atravessá-la, mas tinha pressa porque estava atrasado. Pensei, se eu subir a torre da
Barroquinha poderia ter um bom ponto para alçar voo. Engano. O campanário está no mesmo nível da Chile, ou talvez mais baixa, por cima da
qual haveria de sobrevoar. Mesmo assim, subi naquele Mibunge (assim a chamavam os negros de língua quibunda) de lá, pulei,
conseguindo um pequeno vôo até o inicio da Rua da Ajuda por onde tomei o caminho
do Pelô. Claro que tive medo daquela rua. Quem não tem medo? Os travestis abordam. Não se sabe como responder. Se desagradá-los =, a violência é certa. Se nada respondes, serás esnobe, está discriminando. Os sorriso pode ser um escárnio. Mas, ao final, passei ileso, tendo de explicar, não ser fumante, não tinha cigarros. O pelourinho, deo gratias. Os caixões do moribundos, numa rua atrás da Cantina da Lua. Um sobrado barroco em penúria secular.. A esta altura já tinha escurecido e a casa estava toda iluminada com
velas, apesar de ter nela luz elétrica
como as demais.
Uma
multidão esperava sair o enterro, mas tudo estava atrasado pois as pessoas
envenenadas estavam demorando de morrer. Desenganados por médicos, curandeiros,
babalorixás, yalorixás e os demais que se metem a curar os males da carne,
esperavam resignados até morte chegar.
Esperavam sentados no chão, em
cadeiras, nos sofás. Outros por serem, talvez mais práticos, estavam esperando
a morte já dentro dos caixões, conversando animadamente, matar o tempo. As
pessoas traziam comida e bebidas, tanto
pros moribundos, quanto pros velantes. Chegando, fizeram questão de me dar um
lugar seguro para descansar. Um quarto onde havia uma cama de casal, na qual já
descansava alguém. Que não me incomodasse. Bastava deitar de valete. Não me
incomodei realmente, tanto que nem deitei de valete, uma vez que a cama era
muito larga e havia dois cobertores.
Dum
quarto de meia-parede, ouvia os comentários sobre o acidente do envenenamento
das pessoas e, claro, tinha medo, um inexplicável temor que se apoderava de
mim, sem razão aparente. Falavam em indenizações, em vingança e mesmo em perdão
do Cristo. Preces eram feitas, não pedindo a melhora dos condenados à morte, ou
que morrendo subissem ao céu. Pedia-se
firmemente a morte, diziam, minorar seu sofrimento e o deles. O velório se
tornava cada vez mais cansativo e as discussões cresciam. Há de se fazer este
enterro logo; Como enterrar, se eles
ainda não morreram? Os próprios condenados alegavam já não agüentar mais
esperar a morte. Um queria ser cremado, em lugar de enterrado, mas outro meio
gaiato disse que preferia ser mesmo enterrado, porque queimado, o Senhor Deus
ia ter um trabalho da zorra pra juntar as cinzas no dia da ressurreição. Ninguém conseguiu segurar o riso, mas al fim
todos acordaram em ir seguindo pro cemitério, era o tempo de
eles morrerem.
Começaram a retirar os caixões. Nova discórdia. Alguns queriam logo tampar os caixões, outros discordavam iriam sufocá-los e não podiam fazer isto. Alguns argumentavam, eles iriam morrer de qualquer forma, pouco importa, seja por asfixia ou envenenados. Vão morrer, mas não se pode sufocá-los, seria desumano, além de se cometer assassinato, pois não se pode antecipar a morte de ninguém, disse um legalista. Nova discussão: Os caixões não podem sair pela cabeça, devem sair pelos pés. Mitos, medo, costumes, superstições. Saíram por fim todos. Eu que, durante todo aquele tempo fingira dormir, chamei meu companheiro, temia ficar preso ali. Não posso me imaginar preso naquela casa ou em qualquer outro lugar, morreria mais depressa que os envenenados. Ele acordou assustado. Não poderíamos sair imediatamente. Pelo sim, pelo não, poderiam descobrir ser eu o culpado pelo envenenamento daquelas pessoas. Ah, meu companheiro de cama sabia mais de mim, do que eu próprio. Eu não sabia qual a minha relação com aquele cortejo a caminho do cemitério. Pasmo, pedi que me explicasse o acontecido, ele negou explicações. Não era o momento. Que então saísse sozinho, ver e sentir o ambiente, sondar a barra. Ele saiu e eu fiquei calçando meus sapatos. Apesar de não gostar de sapatos com cadarços, estava com um sapato social preto, feito por Waldemar, o mago dos sapatos, lá na Princesa Isabel. Baixinhos recorriam a ele, sabia como ninguém, fazer sapatos. Fazia-os de todo jeito, de salto duplo, com palmilha alta, escondendo a altura do sapato que o gajo parecesse mais alto. Toda a Bahia lhe devia. Encomendas até do Sul e da Europa. No meu caso, ele aumentara de dez centímetros, assim parecia eu mais alto e elegante. Elegância que tinha um preço. Cansaço. O percurso do enterro coletivo devia atravessar o Terreiro de Jesus, a Praça da Sé, seguir pela Misericórdia, passar pela Praça Tomé de Souza, entrar na Rua Chile, descer a Praça Castro Alves, seguir pela Rua Carlos Gomes, Continuar na Senador Costa Pinto, passar pelos Aflitos, entrar na Avenida Sete, seguir até o Campo Grande, entrar na Rua Araújo Pinho, no Canela, entrar à esquerda na Rua Augusto Viana, passando em frente à Reitoria, descer a Padre Feijó, e por fim, subir a ladeira do Campo Santo, onde seriam enterradas aquelas pessoas. Com um percurso deste, não seria possível que já não tivessem morrido e prontas para ser enterradas.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
Começaram a retirar os caixões. Nova discórdia. Alguns queriam logo tampar os caixões, outros discordavam iriam sufocá-los e não podiam fazer isto. Alguns argumentavam, eles iriam morrer de qualquer forma, pouco importa, seja por asfixia ou envenenados. Vão morrer, mas não se pode sufocá-los, seria desumano, além de se cometer assassinato, pois não se pode antecipar a morte de ninguém, disse um legalista. Nova discussão: Os caixões não podem sair pela cabeça, devem sair pelos pés. Mitos, medo, costumes, superstições. Saíram por fim todos. Eu que, durante todo aquele tempo fingira dormir, chamei meu companheiro, temia ficar preso ali. Não posso me imaginar preso naquela casa ou em qualquer outro lugar, morreria mais depressa que os envenenados. Ele acordou assustado. Não poderíamos sair imediatamente. Pelo sim, pelo não, poderiam descobrir ser eu o culpado pelo envenenamento daquelas pessoas. Ah, meu companheiro de cama sabia mais de mim, do que eu próprio. Eu não sabia qual a minha relação com aquele cortejo a caminho do cemitério. Pasmo, pedi que me explicasse o acontecido, ele negou explicações. Não era o momento. Que então saísse sozinho, ver e sentir o ambiente, sondar a barra. Ele saiu e eu fiquei calçando meus sapatos. Apesar de não gostar de sapatos com cadarços, estava com um sapato social preto, feito por Waldemar, o mago dos sapatos, lá na Princesa Isabel. Baixinhos recorriam a ele, sabia como ninguém, fazer sapatos. Fazia-os de todo jeito, de salto duplo, com palmilha alta, escondendo a altura do sapato que o gajo parecesse mais alto. Toda a Bahia lhe devia. Encomendas até do Sul e da Europa. No meu caso, ele aumentara de dez centímetros, assim parecia eu mais alto e elegante. Elegância que tinha um preço. Cansaço. O percurso do enterro coletivo devia atravessar o Terreiro de Jesus, a Praça da Sé, seguir pela Misericórdia, passar pela Praça Tomé de Souza, entrar na Rua Chile, descer a Praça Castro Alves, seguir pela Rua Carlos Gomes, Continuar na Senador Costa Pinto, passar pelos Aflitos, entrar na Avenida Sete, seguir até o Campo Grande, entrar na Rua Araújo Pinho, no Canela, entrar à esquerda na Rua Augusto Viana, passando em frente à Reitoria, descer a Padre Feijó, e por fim, subir a ladeira do Campo Santo, onde seriam enterradas aquelas pessoas. Com um percurso deste, não seria possível que já não tivessem morrido e prontas para ser enterradas.
De
por mim, como diz o povo, se os enterrava assim mesmo, tivessem morrido ou
estivessem vivo. Não já tinham os
médicos decidido que eles iam morrer?
Umas horas a mais ou a menos não fazia diferença. Esta seara ninguém entra. Há
uma verdadeira barreira aos que não fazem parte desta organização. Médicos,
empresários da medicina, dos laboratórios farmacêuticos e dos equipamentos médicos formam uma corrente
tão forte que ninguém de fora consegue penetrar. Eles decidem tudo. Senhores da
vida e da morte. Você sabe que com sua doença você passa a ser consumidor e
está beneficiando o hospital com toda sua parafernália de equipamentos,
médicos, enfermeiros, laboratórios farmacêuticos e fabricantes de equipamentos
e material cirúrgico e, no entanto, você está ali mendigando, sem poder dizer
uma palavra de indignação, por medo de ser deixado à sua sorte e morrer e nada acontecer, porque Deus quis
assim. O cidadão ali deixa de ser um
cidadão. Quando morre, a família ainda põe no jornal nota de agradecimento pelo
esforço, espírito de cooperação e solidariedade de todos no tratamento daquele
que o senhor foi servido de levar à sua glória. Que descanse em paz, (Alguém
pode descansar sem paz?) e os demais que fiquem com os reais. Quem não sabe que
o médico tem comissão sobre a receita que passa? E sobre o material cirúrgico que usa? Quem não sabe que os laboratórios impõem determinados
remédios? Que os fabricantes de materiais cirúrgicos travam uma verdadeira
guerra entre si para impor seu produto nos procedimentos médicos? Que fazem os
poderes públicos? Absolutamente nada, porque quem deveria fiscalizar tem
interesses ali dentro. É o mesmo que entregar o galinheiro à raposa, mandar o macaco
tomar conta de um cacho de banana. A indústria do laranja está arraigada ali
dentro e muitos são os verdadeiros donos de empresas que tem em seus contratos
sociais simples empregada doméstica,
caseiros de um sítio, porteiros ou outro empregado da empresa. Pessoas que dão
seu nome para criar um contrato social,
entregando toda sua vida aos verdadeiros donos, através de uma
procuração com poderes absolutos para agirem em seu nome.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
Opa, fiquei curioso com a continuação da história. Quando sai o livro?
ResponderExcluirBoa noite, Romualdo. Desculpe, não respondido antes. É que só vi seu comentário. Está, é só passar esta tal de coronavírus.
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