quinta-feira, 2 de março de 2017

A RONDA

                                                                                                                                        (1969)










Nós andávamos de uma rua para outra, entravamos aqui, acolá e sempre tínhamos que sair por que  nos bares não se podia permanecer sem beber. A  rua toda era uma capa espessa de gelo, onde nossos pés afundavam e se endureciam cada vez mais ao contacto da neve que ali se deixava ficar por mais de uma semana. Jussiê, coitado, talvez gemesse mais do que eu  e se lembrasse de sua meninice na catinga seca do sertão do Cariri.
O sertanejo é um nômade e está em toda parte. Todos  fugindo de alguma coisa. Mas de quê? Não sabíamos, nem eu, nem ele. Indignados mas resignados buscavam, como buscamos nós, vencer a própria sorte e talvez trazer de volta uma fortuna que não adquiriria em sua terra. O Nordestino sempre quer voltar. Secas, morte de companheiros de vadiação, profetas barbudos vociferando o nome de Deus, cangaceiros  bradando e imprecando em nome dos pobres e oprimidos, tudo os une e apesar da fuga silenciosa empreendida a cada ano de seca, formam onde se encontram uma comunidade com laços muito fortes.
Andávamos naquele deserto branco e quem sabe? Chorando a falta  de algo que se foi ou nunca existiu. Nossos sapatos molhados, nossas orelhas ressequidas, nossos lábios partidos pelo vento, nossos narizes pingotando, o corpo inteiro quem sabe? Nada  sentiria se estivéssemos encontrado o que sem saber procurávamos. Lutar é inútil, dizia, tudo é inútil, respondia, quase automático. Não há resposta para o nada. Andar sobre a lama da neve, se perguntando para onde ir. Alguém já compartilhara das nossas desditas? Não sabíamos. Com certeza já experimentamos a alegria de se dar, mas a quem? Talvez para ele,  fosse naquele dia  que ajudou a carregar  o caixão  da meiga Genoveva morta  por falta de médicos. Para mim, talvez tenha sido no dia em que chorei quando levaram Virgilina para se empregar em Salvador.
Andávamos. Sós. Corpos também se moviam sobre o gelo machucado pelos automóveis. Nos perguntávamos, por que aquela gente não nos olhava, não via apreensões e tormentos em nossas faces curtidas pelo tropical?
Às vezes, diante do espelho na mansarda de um sétimo andar da Rue  Grennelle, olhávamos  nossa cara e víamos aparecer os primeiros sinais  da desilusão.  E aquele gelo sob nossos pés se derretendo, empretecido pelas rodas dos automóveis, aumentava nossa angústia e crescia a solidão. Uma infindável nostalgia tomava conta de nós, fazendo-nos odiar aquele mundo tão rico e tão mesquinho.  Ainda assim, eu queria ficar, ele queria ficar. Mostrar ao francês de que é capaz um baiano e um cearense no mundo. Mostrar que o sertanejo é, por cima de tudo, um forte, como bem disse Euclides da Cunha. Mostrar que um prato de comida se conquista até com a morte e não se curvar diante da insolência e soberbia do europeu. Gritar a todos os cantos sua indignação perante tão desumanas pessoas, que saqueando o mundo se encheram  de bens e riqueza, deixando atrás de si um rio de sangue e miséria. Ficar. Queríamos ficar, mesmo que a multidão não nos quisesse olhar, ou que todos os proprietários nos expulsassem, como  o do bar que nos expulsou, por não termos dinheiro para beber. Dehors étrangers de la merde, ouvimos, contentes, todavia,  porque nos mostramos mais fortes do que ele, instalado atrás do balcão, protegido pelos metais, que sabíamos terem roubado das colônias. Furioso ficou, quando a todos os pulmões, sorridentes, bradamos: Ladrões da America, Ladrões da Asia, Ladrões da Africa. Ninguém resiste a um protesto não violento. O cara fica possesso. E isto é uma vitória. Estrangeiros, éramos estrangeiros.   É direito do homem à vida e logo à migração. Fronteiras só  para delimitar países, não para impedir o direito de escolha onde viver. Discriminar por  nacionalidade ou nascimento, mesmo que matar. O homem, um só. Terra de todos. Não se tem  direito de impedir alguém de escolher onde deve morar, sobreviver.  Esquecem, os estrangeiros fizeram a fama de Paris.
Voltamos ao nosso quarto na Rue Grenelle e tivemos mais um dia de frio, sem comida, quase, e sem trabalho.  Eu um artista frustrado. Ele um político atormentado. Onde estará agora quem primeiro sequestrou um avião na Europa?


     Continuação in NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

(Publicado  na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança -   Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).







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