Estava
tudo claro-escuro. Era um povoado de casas caiadas, esparsas, numa planície de
mato ralo e arbustos retorcidos, de onde se via, ao longe, a imponente Hydra.
Eu tinha sede e precisava
telefonar. Um aldeão me deu de
beber, que bebi a contragosto, água
barrenta e salobra. Não havia telefones na aldeia. Você pode encontrar água boa
e telefones no topo da cidade. Muito e distante e alta estava, teria de andar
muito, por íngremes ladeiras. Há tempos não exercitava minhas asas. Chegando ao
topo de uma ladeira, fiquei indeciso. Não tinha certeza de que poderia voar.e
um tope E foi com enorme esforço que, de um topo de ladeira, levantei vôo. Para
Hydra, homem-pássaro. Levantar vôo de pequenas elevações exigia muita energia
para manter a altitude e isto me cansava muito, por isso tive que parar inúmeras vezes. E era outro sacrifício
para levantar vôo novamente, porque tinha sempre de fazê-lo do cume de alguma
ladeira. Sou como as pardelas de Cipango. Tenho de escalar uma árvore ou
qualquer elevação para alçar vôo.
Que
alivio quando comecei a distinguir os primeiros arranha-céus da cidade de
Hydra. Seus tetos de vidros coloridos refletiam a luz mortiça do sol-poente.
Posei
no primeiro teto que encontrei pela frente. Desci à rua. Entrei num bar. Tomei
uns goles de um refresco verde vendido por um homem de cabelos também verdes. A
sede não morreu por inteiro. Não quis, porém, beber outro trago. Precisava
telefonar, ou melhor, tinha vontade de telefonar.
Indaguei
das mulheres da cidade. Lindas diziam. Amáveis cochichavam um pouco temerosos,
alguns. Adoráveis, asseguravam, outros,
mais convictos.
Andei,
por entre ruas, becos e vielas, milhões
d´olhos de um vago olhar aflito, cobrem-me o corpo, assustados e
curiosos, mas pacíficas e simpáticas.
Corri, de qualquer sorte era um intruso. Subi num murro e passei para outro mais
alto, daí para um telhado de uma casa de onde
tomei vôo, sempre pousandoem prédios mais altos para retomar vôo.
Bem alto, já, vi um teto que era uma
cuia. Que era u’a mesa. Que era uma agulha.
Abri
os braços-asas na busca daquela que era a dona da cidade. Hydra.
Hydra.
Mulher linda. Mulher rica. Mulher inteligente. Mulher-mulher.
E
vi no mais alto dos prédios, um lindo terraço colorido e perfumado pelas flores
de toda terra. Posei em seu tapete aveludado.
Hydra
falava ao telefone. Hydra. Falava ao telefone.
Seus
olhos verdes cor de fogo saíram de seu rosto e tocaram minha pele queimada.
Seus cabelos voaram e taparam o sol.
O
amarelo ficou negro. Eu apenas balbuciei: Eu ... Eu queria telefonar. - Sua
presença era o mundo.
Seus
braços se abriram. Looongos. Caiu o telefone que se partiu.
Suas
pernas partiram, enormes, para mim.
-
Lindo, lindo homem, me ama.
E
vi sua língua em forquilha soltar pequenas gotas de um líquido que me atingiam
o corpo, queimando-me a roupa e assando-me a pele. Quis tapar as narinas para
não sentir o hálito fétido que exalava, mas pouco efeito fazia. Já estava todo
empestiado de sua saliva.
Eu
tentava voar e não mais podia. Maior era o esforço, mais perto estava ela de
mim. De seus braços que esticavam. De suas cabeças, mil. De seus olhos
coruscantes.
Me
ama. Me ama.
E
mostrava os seios lindos. O corpo
ondulante, qual uma serpente e com o fremir da dança do ventre.
Molhado
estava. Queimado estava. Era uma ferida só. De sua saliva. De seus olhos.
E
vi minhas asas caírem. Meus dedos. Meus braços. Minhas pernas. Meu corpo. E o
nada..
Agora
sou.
Sua
voz. Seus olhos. Seu corpo. Seu cheiro. Sua beleza.
Eu
sou a Hydra. Eu sou Hydra.
(Publicado na Coletânea
LITANIA – O Grito da Esperança - Contemp
Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).
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