sexta-feira, 22 de abril de 2016

ULTIMO SONO















Ouviam-se apenas os estalidos das folhas crestadas pelo sol. Caiam retorcidas sobre o chão quente e endurecido. Nem cigarras, nem pássaros, nem farfalhar de folhas. Não havia. Tudo era plano, quieto e cortado por numerosos caminhos que se cruzavam e não levavam a lugar algum.
Caminhava, por caminhar. Lá e cá, mandacarus abriam seus braços espinhosos. E deitavam sua magra sombra sobre a areia esturricada. Gravatás, xique-xiques e mancambiras ornavam a terra quente e pedregosa. Caminhava. E vi seu corpo moreno estendido ao longo de uma vereda.
Sob o céu azul, inúmeros pontos negros ensombravam o chão, outros pousavam simplesmente sobre galhos de mato seco. Angicos, sumarentas quixabeiras e sempre verdes juazeiros. A boca entreaberta deixava adivinhar pedaços de carne sujos de sangue coagulado. Outros, arrastavam-se pela areia carregando a carne que era sua. Alguns dormiam a sesta, após saciarem-se do banquete que lhe fora oferecido.
Seu corpo moreno. Seus olhos, antes feiticeiros, travessos, eram dois buracos negros que levavam não se sabe aonde. Seus seios. Pequenos, sensíveis - quanto eu os afagara! – agora, assemelhavam-se a dois pequenos formigueiros povoados por larvas e vermes hediondos.
Seus lábios. Antes doces e suaves, tinham o gosto de sangue putrefacto.  O corpo todo, antes, repleto de graciosas curvas sacudidas por vibrações eletrizantes, deixava antever, aqui e ali, por entre as chagas supuradas, toda sua conformação óssea.
O monte de Vênus, onde se escondiam supremas delicias, era uma cratera imunda visitada por moscas, mosquitos e aves de rapina. Estas, apoderavam-se, de quando em quando, de seu corpo, de sua carne, indo ao depois  brigar ao longe pelo maior bocado.
Eu me acerquei cambaleante de minha amada. Exalava um fétido ar que entrava em mim,  provocando-me náuseas e vômitos, como  se tivesse bebido todas as adegas do mundo.
Fiz-me forte e me acerquei mais ainda de seu corpo. E minhas pernas dobraram-se. Meus joelhos sangraram o solo que o sol queimava. Com o estrépito de meu corpo sobre o chão, afugentaram-se algumas aves que insistiam e aproveitavam-se dos últimos bocados de minha amada. Planaram preguiçosamente, pousando aos poucos  em mandacarus de braços abertos.
Meus olhos regaram  o esturricado  chão tropical. Meus braços abriram-se e minha boca. Triste foi minha voz não encontrar eco. Ela sabia que eu amava sua voz. Mais triste ainda foi não ver o seu sorriso, nem ouvir os seus gemidos. Os mais belos.
E ali. – Eu – à vista de seus últimos e mais fiéis amigos,  realizei o meu derradeiro e interminável ato de amor. E abraçado aos seus restos, fui-me apoderando de uma sonolência tranqüila e galopante. E fui dormindo. Fui dormindo. Dormindo. E dormi. Meu ultimo, mais sereno e infinito sono.
Caminheiro que viajas a lugar nenhum,
Quando passares, por aqui,
Apanha um lenho qualquer e nele inscreve:
Aqui jaz um homem que amou
E sua amada.




(Publicado com pseudônimo El Carmo na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança - Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).
Na Coletânea de Contos – Ed.  Scortecci, 2009, São Paulo-SP. Pseudônimo El Carmo.
In,  http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

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