Hoje é carnaval na Bahia, mas também, e acima de
tudo, Dia de Iemanjá. Abiãs com seus contra-eguns, ogãs, babalaôs,
apetebis, babalorixás, dotês e donês,
Tatás de Inquice, mametus de inquice, o alapini do Brasil, assobás, yalorixás,
iyakekerês, Iyalaxês, agibonãs, Iyabassês, ajoyês ou ekedis, babakekerês, akepalôs,
ogans, yaôs-eleguns com seus idês, ebômins, kakanfós, obás, obaxoruns, abás, balés, aquirijebós, amobirins e até
alibãs, todos devotos, e com seus brajás e aladoris na cabeça, diante do peji, entoam a saudação à Rainha do Mar, Odô Iyá,
filha de Olokum e esposa de Olofin-Odudua: Omi
ô odo iyá eruiáque, com seu abebê, certamente abençoará seus filhos
dando-lhes muito axé. Tocam o rum, o lê e o rumpi. Inicia-se o padê.
Sacodem-se agés e caxixis. Percute-se agogôs. Alabês entoam os cantos. Sacodem-se os adés. Começa o
xirê. Agbôs ou amassis são feitos. Serve-se o ungê. Acaçás, acarajés, abarás,
flores, perfumes, espelhos, enfeites diversos, anéis, colares, fitas, brincos,
pentes, bijuterias, jóias, relógios, maquiagens e bonecas, velas, bebidas e
comidas, fava com camarão, cebola e
azeite doce e até champanhe são oferecidos, a Dandalunda, Janaína, Marabô, Princesa de Aiocá, Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá, tudo feito numa ânsia maluca de afastar o ajogun e
alcançar o axé. Nas ruas, o samba de roda, o
ijexá, a capoeira, afoxés, muita gente trajando roupas dos rituais
do candomblé. Esta é a festa do Rio Vermelho
da Bahia de São Salvador do Brasil. Quem mora no Ponto da Mangueira é um
pulo, nem vale a pena uma condução. Todos iam a pé mesmo. Estivera trabalhando até quatro da tarde. Carregando pedras, fazer, na frente da casa, um muro de contenção pois, quando chovia, era água entrando pela frente e saindo pelo fundo de casa, bem no pé da
ladeira do Sobradinho. As irmãs, arrumadas para a festa, saíram já. A patota do Colégio Manoel Devoto. Quantas
delas, olhar distante, disfarçado e erradio, não cobiçara! Que elas não o vissem assim apalermado. Lembra-se, tantas, belas. Vera, Neila,
Margarida. Alice, Beatriz e Aimar. Tomou seu banho, tirar o suor das pedras, pôs a melhor roupa, brilhantina no maracanã jogou um pouco de colônia 1010, penteado o maracanã com brilhantina, partiu para o Yemanjá, ver as garotas, paquerar, se declarar. Um não, que medo. Pela linha do bonde, não sujar de lama os sapatos. Escurecia no Largo de Santana, tocando pó Trio Elétrico Tapajós. Meninas em cordões, ora serpenteando, ora fazendo rodas. Visão eterna mil vezes, como no Carnaval em Colônia. Valquírias, azuis os olhos que nem o céu da Bahia. Em voga, a cabeça de côco, um cabelo curto, surucos, anjos barrocos. Uma, de olhos tão verdes, como os de Aurinha, cortavam a alma. O flerte de tocar os cabelos compridos era agora, acariciar a cabeça como a se consolar uma criança. O sorriso era a senha, mas poucos ousavam tocar-lhes, mesmo sabendo estarem ali pra isso, serem tocados por um macho. Se lhe agradasse, sorte dele. Se não, azar dele. Chamavam irmãos ou parentes ou a polícia e a confusão estava formada. Quantos marmanjos, não foram presos? Sim, por um inocente toque de cabelo? Quantas brigas, quantas? Bulhas surgiam de repente e se batiam contra todos, sem saber o porquê da contenda e quando chegava a polícia, prendia-se, freqüentemente, os que tentavam separar os brigões. Conhecidas estas festas de Largo - Boa Viagem, Lapinha, Bonfim, Ribeira, Conceição e Iemanjá - alegria do baiano, onde se fazia a paquera, origem de casamentos e separações. Todos andavam ombro a ombro, embora outros, privilegiados, assistissem a festa confortavelmente em casas de parentes e amigos. Iemanjá. Ele, só, no branco da multidão. Aqui, os requebros dun’a mulata, ali, o doce olhar da cor de mel, acolá, feitiço do verde
apaixonado, mais ali, o misterioso azul do mar, e, mais na frente, o profundo negro do olhar. Todas lindas, moças da Bahia. Não estava acostumado à algazarra juvenil de quem criado com a liberdade das ruas, sem as amarras do claustro, pouco afeitos às meditações e introspecção. Quem, privilegiado, embora, bolsista, estuda num caro internato, sofre com o isolamento. Depois vem a timidez, aversão às multidões, medo da rejeição. A vida em colégios internos, cortou-lhe a presença feminina, a iniciação no álcool e no fumo, muleta e combustível juvenis, terrível experiência dificultando-lhe a comunicação com sua geração, sempre traumática e desoladora. Censuravam-lhe o falar, escolhendo palavras, sem gírias, sem palavrões, o vestir-se fora da moda, como pessoa de outro mundo. Quando no Duque de
Caxias, a professora de inglês organizara um passeio à praia de Inema, local já na época privilegiado, (Área residencial de oficiais da
Marinha), hoje, famosa no mundo, porque refúgio das lidas de presidentes - Lula e Dilma - descanso
da faina política, no carnaval, páscoa... Tempos de rudeza. A tradição, o tabu se debatendo com as novidades da industria cultural da Europa e Norteamérica. Preso ao passado, sem roupas de praia, sem sandálias, um alienígena. As moças, mais afoitas, entraram n´água, os rapazes na areia. A professora ficara na areia com algumas moças. Cadê as mulheres? Perguntou. Todos coraram e ele, atormentado pelo resto do dia. Todos se entreolharam, um silencio ouvido pelas ondas perpassou. Percebendo sua gafe quis consertar, mas a emenda saiu pior do
que o soneto. Mas, não é mulher mesmo? Elas são homens por acaso? Novo
silêncio, agora acompanhado de uma certa reprovação no olhar de todos. É que
naquela época, dizer mulher era o mesmo que chamar puta. Dizia-se, pomposamente,
minha esposa. As solteiras, simplesmente moça, ofensa, chamar moça de mulher.
Ofensa sem perdão. Traumático, sempre, o embate de gerações. O
novo e o passado. Não se admite
mudanças. Sempre perigosa, quem a
quer é louco, ou degenerado. Nas cavernas, quem sabe? Ser jovem é não ter juízo, sem
responsabilidade. Quem mais se parece com os velhos, é tido como adulto, com juízo, exemplo a ser
seguido. Por que você não faz como fulano de tal? Ali, sim que é um
rapaz ajuizado. Um homem que todo pai queria pra sua filha. Ah se não fossem os doidos, os sem juízos. Que
seria deste mundo? Estaríamos ainda na idade da pedra lascada. Topada é que
leva homem pra frente, diz o ditado.
Mas, como felizmente, o homem não é feito só de
barro e sopro divino, como querem os criacionistas, é antes de tudo o criador do mundo, ou seu
próprio criador, na medida em que ele faz sua historia, faz a historia do
mundo, ele inventa, ele cria, ele surpreende. Quem duvida de que um dia o homem
lascou a pedra e a tomou como instrumento e arma? Que depois a poliu com os
mesmos fins? Quem vive o que se vive agora, com as facilidades que a tecnologia
lhe garante não pode ter dúvida de que tudo isto foi criado pela mente humana.
Se assim não fora, como explicar a diversidade de vida e visões que o homem tem
demonstrado ao longo de séculos? Por isto que não se deve lastimar a existência
dos arredios e foras do contexto. Serventia, eles têm, é só buscar e ver. Equilíbrio
do mundo, por exemplo. Não? Se todos fossem à guerra com igual ímpeto, quantos
sobrariam pra contar a história? O mundo é o homem e cada homem tem seu mundo.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
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