sábado, 12 de setembro de 2015














No banco a noute fora longa e friorenta, naquele outonal verão em Paris. Resistiram brasileiro e lusos, pingüins amontoados, carregando  sonhos e pesadelos. José Manuel iria se unir aos pais, fizeram o salto (A pé, D´Espanha té França) antes, quando ainda se encontrava matando gente e bichos n´Angola, aonde fora mandado desde que sentara praça. Portugal alimentava com corpos jovens, quase imberbes, as colônias d`Africa, D´Asia e Oceania, num orgulho besta, pois há muito perdera o império dos mares, tomado por flamengos, francos e britânicos. Grande Zé Manuel, indignado porque o chamavam de Manuel. Ouve lá, pá, por que me chamas de Manuel? Oh, desculpe, sempre pensei que te chamavas Manuel, mil desculpas. Como te chamas então? Tu bem sabes  que eu me chamo José Manuel, pá. Rsrsrs. O outro, Antônio (eles escrevem António) Alexandre, vinha matar em Paris a solidão das noites timorenses. Timor, ali fora jogado pela  armada, tão logo se engajara. Sua única diversão no forte de  Santo António de Lifau,  de quinze em  quinze, era o  caminhão de víveres e suprimentos,  da capital Dili; Suprir a fome daqueles soldados  abandonados  nos confins da Melanésia,  um dia  governado por Antônio Coelho Guerreiro, intimorato brasileiro que amou Timor como  Pernambuco, sua terra.  Lembrava, com certa nostalgia, de Flora,  diaque, bela Flora,  nativa que lhe acalentava as noites quentes da Pérola do Oriente, como a chamava o pernambucano, cantando numa língua mista de português e tetum, este, por si só, já impregnado de português,  decorrência de longos anos de domínio  luso sobre o povo maubere, uma canção arrastada e modorrenta. Como era limpa aquela mulher, pá.  Escovava  os dentes, esfregando também a língua que se tornava  doce e melíflua na boca lusitana. Horas a fio, papeando. Sua experiência naquele cu de mundo, alimentando curiosidades e gosto por coisas exóticas. Inveja.  Meu projeto de vida, andar no mundo, em cada país uma semente, um herdeiro em cada povo,  misturar, fazer o mundo se entender. José Manoel, o matador de negros n´Angola, (Felizmente não precisava tirar o couro a fazer sapatos, como faziam os ingleses  com os aborígenes da Tasmânia),  não me tornava curioso. Tanto negros vi, pensava conhecê-los. Inverdade, inda que se viva mil anos não apreende a  África inteiramente.

Gandra, conversador, brincalhão, um portuga revolucionário, comunista e agitador. Frequentava conferências, palestras e encontros de tudo que pretendesse mudar o mundo. Marxistas, lenistas, trotiskistas, com sua revolução permanente, e maoistas defendendo a luta armada em todas as frentes, enfim, gente  de todas as cores e línguas se debatendo em tertúlias  onde o sonho era mais forte do que a realidade. Era, no entanto, preciso sonhar. Sem sonhos a realidade não muda. Falastrão e irreverente, vivia, Gandra, às tulhas com os revolucionários de então. Tivera, um dia, sério embate com Bani Sadre,  anos mais tarde, primeiro presidente do Irão, pós  derrubada do Shá Reza Pahlevi, por Khomeini, o Aiatolá, por rogo do  Majalis, o Parlamento. Ironia, Abulhassan, outra de suas alcunhas, deposto, acusado de tentar impor uma política leiga, quando nós o tínhamos como  muito religioso. A Pérsia dos  Aiatolás  não suportava uma república laica. Onde andarás tu, Dārayava, possuidor da bondade? Iria encontrar a Milu pá, muito antes da Malu aparecer e dançar em sua cabeça,  bela rapariga de Funchal, uma paixão nascente, solitária e dorida. Levaria um par de meses a pensar na garota muito gira e espirituosa que se insinuava por entre todos, sem se  deixar tocar por ninguém. Pensando nela fez, no La Coupole, enquanto Picasso, Buñuel, Sartre e outros discutiam seus projetos, um poema escrito num guardanapo  guardado até hoje, como recordação de um amor solitário. Este poema  o salvou. Nesta  noite quando estava sem lugar onde dormir, sentado numa pequena praça, tentava escrever algo, enquanto esperava o amigo português (sempre um português na minha vida) que me oferecera dormida.  


Continuação no livro NOITE EM PARIS, em breve nas livrarias.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

URUTAU É MÃE-DA-LUA


Noite em Paris, em breve nas livrarias.












Quando a mãe-da-lua cantava, era noite. Quelí também uivava co grito invisível daquel´ave, fantasma dos galhos secos nas noites d´Ourissanga.   Queli, quanto eu gostava. Da  língua, o baticum ouvir, bebendo leite. Sacudia alegremente a cauda, era só papai Nézinho chamá-lo junto a gamela. Quando a mandalua cantava, Queli dormia, acordava e latia um ganido assustado, mas amigo, porque sabia, não há perigo no canto do Urutau, no assobio do curiango, no grito do bacurau, na escuridão silenciosa da pituna. Meu bacurau doce e formoso, ouve a prece de Tainá, salva meu Cauê do mal. Lindo bacurau da mata, cura o dente da jurema. Dizendo e bacurau escrevendo.
Quando a mãe da lua cantava, soturno e agourento canto,  eu acordava, ouvia Nanã: Dá já falou, Dá já falou. Quando a mãedalua gritava, noite escura, tinha medo de seu canto. Por que será de teus cantares? suspiros d´enamorados? Deusa: ensinar  a falar ao homem. Quando o urutau  cantava era noite bonita, chirriava e ninguém via. Dá já falou, Nanã  respondia ao sopro d´urutau, fagote das matas tropicais. Nheambiú chora  Cuimbaé. Mistérios da fala, mistérios do amor. Cantofala. Da camarinha, o escuro, o canto e voz ouço de Nanã. O brilhoazul nos olhos da manhã. Sim, ouvira a mãe-da-lua, cantar. Olhos, cabeça e corpo, diziam. Encanto e medo,  pássaro fantasma, fincado em galho seco em noite quente do sertão.
Ourissanga da Ponta da Serra. Um casarão sobre a colina, de onde se via o peji de Hélio curador. Bate cancela, tambor repica, arreia-se o padê, na procissão. Cura de seus males. Cegos, aleijados, tísicos, aluados, mundo, enlouquecidos.  Medo, enlouquecido mundo. Ismael, louco Ismael, barria as ruas d`Aroeira, cantando,  fanhosa e rouca voz. Chulas,  cantigas do carnaval marcadas com  bassoura de cassutinga. Quem te pôs no porta-malas, Carine? Quem te atiçou sobre as fezes do mundo,  tann sem hauser? Mundinsano.  Depressão, estava, antes. Modismo, besta.  Milhões, muito mais  daqui pra frente, sofrendo. Tristeza? Toda alma é triste, nossa humanidade. Vontade de sair correndo. Mundo, pequeno mundo.  Não quero ver ninguém, só estar na multidão. Não tenho direito de ser feliz. Alguém tem? Não quero levar ninguém comigo. Cada qual viva sua vida e não se culpe por nada. Notícia ruim  corre depressa. João correu pro mato. Procurar. Alguém o viu todo lascado por espinhos pro lado da Pedra Bonita. Se o mundo é louco?  Líria, por que  pagastes por te matar?  Que faz um homem aceitar dinheiro pora matar quem lhe pagou? Tu respondes, Ricardo? Trinta  anos abatidos por uma bala que nem de ouro era, como a que matou Júlia Fetal pelas mãos de seu noivo João Estanislau da Silva Lisboa. Mundo louco mundo. Cães  ladram e mordem não me aborreçam. Fui sacudido com os gritos assustados de um galo d´angola que, fruto de  despachos (Helio fazia despachos com animais vivos, não os matava), havia montado no mato e vivia com galinhas também em estado selvagem. Como os bichos, o homem, também pode voltar ao estado selvagem? Ou será que já chegamos lá? Por medo, não se lhes tocava, reproduzindo-se rapidamente, deixando-se ficar ali espantando as pessoas, romeiros, caçadores e viajantes. Mundo imundo enlouquecido. Do fundo de casa se via, no pé do morro,  a fazenda de Zulé. Casa caiada de portas vermelhas, um curral de gado e chiqueiro  d´ovelhas e cabras. Ao lado, a casa de Mariquinha, onde  comi  a melhor galinha da minha vida. Nada se faz hoje como antigamente. N´A Portuguesa da Avenida  Sete, sim, que galinha, Mariquinha se fez presente, retorno  ao passado. Que estás a pensar pá?  Ponha mais um pouquinho, o menino gostou da galinha. A mãe do portuga que fez comigo o salto. Bom este pirão. De lamber os dedos. Mole de gorda. De  galinheiro, milho inchado pelo bico, como capão de mulher parida. Galinha, o prato chefe do Stock Pot,  onde Luiz confundiu a conta, the bill, com um prato. Procurando no cardápio. Desculpe senhor, este prato, nós não temos.  Cara, ele está te pedindo a conta. Quem conta um conto aumenta um ponto. Sério que foi assim. O riso no ponto da marinete. Roceiro pechinchando. Um mil-reis está caro, pago quinhentos-réis. Arrelia dos da cidade. Cidade maravilhosa cheia de encantos mil, de dia falta água, de noite falta luz. Ourissanga, na frente o varandado, luz de  fogueira pra esquentar  frio e pandeiro. Anos depois, quem diria, o Varandá, (corruptela de varandado), da Rua Pau da Bandeira, boêmia das noites baianas, ombreando o Cruz Vermelha, nascido em l883, vibrando nos setenta do século vinte, me veria.  Dramáticas discussões, regada a  suco de cevada, por um bode morto em pleno espetáculo de Ariman no Teatro Castro Alves. A alma penada de Lady Macbeth nos corredores do castelo e a loucura de Macbeth no banquete com a visão do fantasma de Banquo. Ou ainda o impacto  da moralidade medieval  “Todo Mundo” vista do fim ao principio numa inversão proposital de seu diretor Jesus Chediak. Na estreia, Fausto resolve, no final, (até hoje não se sabe se improviso, ou constava do espetáculo) abraçar delicada e sensualmente a bandeira do Brasil. A policia Federal proibiu o espetáculo que se ensaiara longos meses e a Universidade gastara uma pequena fortuna na produção. Tempos de ditadura. Toda atriz era prostituta, todo ator, viado. Do varandado, de onde se via o cemitério e  o curral do Garapa, se penduravam gaiolas e cortiços. Uruçu, o melhor mel. Mandaçaia, o mais bonito. Jitaí,  milagroso, tubi, o mais vulgar, sanharó, o mais nojento, arapuás, manduris. Quando se ia furar cortiço ninguém visitava Ourissanga,  não assanhar as abelhas. Noite de escuro, chapéu, foice e machado, facão espingarda  e facho,  furar arapuá. Enrolando-se nos cabelos, entrando pelos ouvidos, gostoso mel. Atingia-se o varandado por duas enormes pedras  postadas em frente, à guisa de escada. A casa sempre acima do chão, como num pedestal, solução da arquitetura rural, dificultar a entrada de animais, especialmente, cobras. Daí se viam também  o terreiro, a malhada  e o pasto da frente.  Varanda, a sala da frente. Ai se armavam redes, penduravam-se nos cabides, cintos, chapéus e chocalhos e outros apetrechos. À direita da varanda, uma  porta ligava ao paiol, uma enorme despensa que se alongava até  a cozinha, por onde também se entrava. No jirau se guardava o milho, o feijão, a farinha e outros mantimentos. Homens subindo  a escada, sacos na cabeça a despejar no jirau. Fazia um barulhinho gostoso. Um pouco, a música da terra. Bonito ver a farinha derramar-se no salamim, quando se abria a gaveta do jirau. Poeirinha branca pintando  cara,  cabelos.  Sai desta p’uêra, m´nino, Quantas vezes não  ouvira? À esquerda, o quarto da frente. Dormiam meus tios e depois, também eu quando já crescido. Pandeiros pendiam das paredes. Ganchos de madeira trabalhada desciam do telhado onde  se guardavam roupas. Três camas, madeira e couro. Bom batucar nas  camas.
Tambor. Pandeiro. Marcam o samba, o batuque, a chula, e o martelo chorados na viola,  chora.Palmas em contratempo embaladas por colher  arranhando  prato. Quando o sol se esconde tio João pega o pandeiro,  esquentá-lo no fogão. Crepita a brasa,  retesa o couro. O fogo afina o couro, a mão afina o tempo. No varandado, toca a  tocar. Ressoam pandeiros  na mata, assunta o caboclo,  de ouvido aguçado.  Responde ao chamado seu Gregório. Diálogo das mãos no couro de gato esquentado. Sons da mata, ritmo da vida,  Iniciado.

Continuação no livro NOITE EM PARIS.