sexta-feira, 22 de abril de 2016

ULTIMO SONO















Ouviam-se apenas os estalidos das folhas crestadas pelo sol. Caiam retorcidas sobre o chão quente e endurecido. Nem cigarras, nem pássaros, nem farfalhar de folhas. Não havia. Tudo era plano, quieto e cortado por numerosos caminhos que se cruzavam e não levavam a lugar algum.
Caminhava, por caminhar. Lá e cá, mandacarus abriam seus braços espinhosos. E deitavam sua magra sombra sobre a areia esturricada. Gravatás, xique-xiques e mancambiras ornavam a terra quente e pedregosa. Caminhava. E vi seu corpo moreno estendido ao longo de uma vereda.
Sob o céu azul, inúmeros pontos negros ensombravam o chão, outros pousavam simplesmente sobre galhos de mato seco. Angicos, sumarentas quixabeiras e sempre verdes juazeiros. A boca entreaberta deixava adivinhar pedaços de carne sujos de sangue coagulado. Outros, arrastavam-se pela areia carregando a carne que era sua. Alguns dormiam a sesta, após saciarem-se do banquete que lhe fora oferecido.
Seu corpo moreno. Seus olhos, antes feiticeiros, travessos, eram dois buracos negros que levavam não se sabe aonde. Seus seios. Pequenos, sensíveis - quanto eu os afagara! – agora, assemelhavam-se a dois pequenos formigueiros povoados por larvas e vermes hediondos.
Seus lábios. Antes doces e suaves, tinham o gosto de sangue putrefacto.  O corpo todo, antes, repleto de graciosas curvas sacudidas por vibrações eletrizantes, deixava antever, aqui e ali, por entre as chagas supuradas, toda sua conformação óssea.
O monte de Vênus, onde se escondiam supremas delicias, era uma cratera imunda visitada por moscas, mosquitos e aves de rapina. Estas, apoderavam-se, de quando em quando, de seu corpo, de sua carne, indo ao depois  brigar ao longe pelo maior bocado.
Eu me acerquei cambaleante de minha amada. Exalava um fétido ar que entrava em mim,  provocando-me náuseas e vômitos, como  se tivesse bebido todas as adegas do mundo.
Fiz-me forte e me acerquei mais ainda de seu corpo. E minhas pernas dobraram-se. Meus joelhos sangraram o solo que o sol queimava. Com o estrépito de meu corpo sobre o chão, afugentaram-se algumas aves que insistiam e aproveitavam-se dos últimos bocados de minha amada. Planaram preguiçosamente, pousando aos poucos  em mandacarus de braços abertos.
Meus olhos regaram  o esturricado  chão tropical. Meus braços abriram-se e minha boca. Triste foi minha voz não encontrar eco. Ela sabia que eu amava sua voz. Mais triste ainda foi não ver o seu sorriso, nem ouvir os seus gemidos. Os mais belos.
E ali. – Eu – à vista de seus últimos e mais fiéis amigos,  realizei o meu derradeiro e interminável ato de amor. E abraçado aos seus restos, fui-me apoderando de uma sonolência tranqüila e galopante. E fui dormindo. Fui dormindo. Dormindo. E dormi. Meu ultimo, mais sereno e infinito sono.
Caminheiro que viajas a lugar nenhum,
Quando passares, por aqui,
Apanha um lenho qualquer e nele inscreve:
Aqui jaz um homem que amou
E sua amada.




(Publicado com pseudônimo El Carmo na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança - Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).
Na Coletânea de Contos – Ed.  Scortecci, 2009, São Paulo-SP. Pseudônimo El Carmo.
In,  http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

E TU SILENCIOSA, APENAS RIAS

















           Porque sou feio tu nem sabes que existo. Porque sou tão pequeno, tu nem me vês, quando te olho. Existo Cristina. Desde o dia em que te vi na capa daquela revista. És alegre, e, no entanto, tens os olhos sensualmente tristes.
          Segui teus passos apreensivamente e vi-te deitada sobre o feno. Tu não te lembras. Corrias vaporosa, talvez, os lugares chique do mundo, quando te tomei pelo braço e te trouxe a meu quarto. Pus u’a música, deliciosamente sensual, na vitrola, perfumei-me com essência de jasmim e corri prus teus braços. Tinhas uma camisola branca com rendinhas amarelas. Olhavas par o teto, pensativa, com a mão direita sob a nuca. Com a esquerda, guarnecias a camisola, talvez por resquícios de pudor. E fiquei minutos em pé a te olhar. Teus cabelos negros. Teus olhos castanhos. Tua boca sempre entreaberta. Eu me lembro. A camisola jazia entre tuas pernas, formando um lindo triângulo. Pairava um cheiro de flores silvestres. Tu não dizias palavra. Parecias estar gostando. Parecias não estar gostando.
          Nu. Eu te olhava. A mão começou a acariciar-me. A esquerda. A direita. Tocava meu rosto. Meu peito. Meu umbigo. Descia por minhas pernas. As unhas faziam cócegas gostosas e engraçadas. Os dedos se enfiavam docemente entre os pelos. Meus olhos se enchiam d’água. Minha boca ressecava. Meus gemidos não te assustavam. Mas eu me recordo. Eram estranhos. Dolorosos. Solitários.
          Às vezes, tu viravas o rosto tristemente e paravas meu movimento. Punhas a cabeça sobre o braço e quedavas pensativa. Descobri um angulo agudo nos teus braços, por onde tu mostravas os teus seios de pontas vermelhas e eriçadas.
Eu recomeçava o jogo. Tinha passado um creme nas mãos par amaciar. Agora me sentia melhor. Te disse que gostaria de ser bailarino, porque acho que um bailarino sabe mais fazer amor. Te prometi fazer um poema inspirado em ti. Talvez tenhas esquecido ou nem saibas disto, mas demoramos mais de duas horas no jogo do amor.
          Tu me prometestes um postal de Roma. Tu me pedias para falar. Falar. Falar. Porque gostavas de ouvir meu falar brasileiro. Eu achava sensual teu falar italiano.
          Eu te coloquei entre minhas pernas e tu gritastes, que estava te amassando. Tinha esquecido a tua fragilidade. Que ânsia. Já eram três horas da manhã e eu não estava cansado, apesar de ter acabado de chegar de longa viagem de ônibus. E pensar que no dia seguinte teria de fazer uma prova às oito na faculdade.
          Eu te expliquei que vivo uma vida atribulada, morando no interior e estudando na Capital. Além do mais, tenho meus problemas financeiros, pois inda este mês, tive dois títulos protestados pelo banco, por falta de pagamento. Que sou bom profissional, porém, ainda não tenho o reconhecimento  público, e que nesta profissão, está mais em jogo os interesses políticos e econômicos do que mesmo a capacidade profissional do indivíduo. E que se fosse um rapagão,  irresponsável,  brincalhão e burro, mais sucesso teria do que sendo cerebral. O jogo do amor se tornava extenuante e demorado. Outras vezes, mal começava, chegava ao orgasmo. Sem graça. Insosso,  egoísta.
          Contigo talvez tenha sido inibição. É um sonho louco ter-te em meus braços, na minha cama, quando sei que todos os homens do mundo te desejam. Tu não te recordas, mas foi preciso repetir o disco várias vezes. Ouvia-se ao longe o latido de cães e a zoada dos autos na avenida. Eu não sabia mais se os latidos ali eram do Animals Dogs de Pink Floyd ou de cães perambulando na madrugada. How  I wish you were here. Chorava a guitarra, cortando minha carne, rasgando minh´alma, chorava eu. Cansado estava. A mão direita não mais suportava movimento algum. Estava disperso. Acendia a luz. Apagava a luz. Olhava tua imagem. Concentrava-me. Em ti. Me lembrava de cenas vistas na infância, algumas das quais eu participara ativamente. Um casal de cachorros. Uma jumenta. Gatos miando no telhado. Os gritos lancinantes de uma porca. O dia em que peguei Terezinha debaixo de um pé de quixaba.
          Não conseguia. Estava molhado de suor. E ia desistir. Me olhavas tão meigamente triste. Lembras-te? Amarrotei teus lábios, teu pescoço, teus seios, teu corpo. Um frêmito perpassou-me todo o corpo. Como uma navalha. Veio do mais dentro de mim um líquido. Cortante. Inundando nossos corpos. Lacerando nossa carne. O perfume do amor invadiu o quarto e a música. Gritei um grito de prazer e dor.
          E tu silenciosa apenas rias.
          E tu silenciosa apenas rias.
          O riso moreno de teus olhos castanhos.
          O sorriso. O mistério da madona.
          Me vi.
          Só.
          As mãos.  Meu corpo. Teu corpo. Umedecidos.
          Enxuguei-me com tua roupa. Tu te lembras? Fui ao banheiro e joguei tuas roupas na cesta de lixo.
           Tu te lembras?



(Publicado na Coletânea GOTA D´ÁGUA, Ed. CONTEMP/GALDEN’s, 1990, Salvador).


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.



domingo, 17 de abril de 2016

VIAGEM DENTRO DE MIM
















 Relaxa cara eu não vou te matar teria dito eu, ao gordinho que me pediu para não matá-lo. Ele se cagou todo quando botei a arma em cima dele. É nenhuma, meu rei. Você não é o meu. Queria apenas fazer medo, mostrar que vocês todos são uns cagões. Todo mundo pedindo arrego, mas na hora de pegar no meu pé, todo mundo era o porreta. Juro que não queria isto. Nunca pensei nisto, quando a gente vê, já fez. Eu estou aqui, nesta pedra gelada. Cadê  alguém para me buscar? Nem parente, nem derente.  Vergonha? Quando deviam ter, não tiveram. Agora todo mundo é bonzinho, só eu sou monstro. Pensam que não sofri por isto? Ninguém é melhor que ninguém. Só não se tem as mesmas chances. Não reclamava de nada. Iria adiantar? Reclamar, com o jeitinho, senão será pior. Agora inventam coisas. Em minha boca, palavras que nunca disse. Vasculham minha casa, como se fosse um cão danado. Quando só, ninguém me visitava. Minhas memórias, queimaram-nas, pior que a morte. Esconjurado estou, famoso, não. Buscam razões onde não as podem encontrar. A mídia vai à loucura, dinheiro. Ninguém me compra um jasmim, adoçar o ar. Frio nos ossos e na alma que se não partiu, inda atrelada a meu corpo virgem e sedento de amor e compreensão. Anátema. Uns nascem para brilhar, ofuscando outros, debatendo-se na escuridão. Injustiça? quem sabe? como compreender as leis do mundo? Sim, doloroso é. Quando virão  me buscar? Não volto mais, alguém já voltou, para contar da luz, das trevas?  Ficam as obras, para onde fui empurrado? Manchada a família. Qual, Que imagem? A do oprimido? Outros se banqueteiam na orgia e concupiscência. Não tenham medo, logo nos esquecem. O mundo quer escândalos, mas tudo é fugaz, superficial, a essência, ora a essência, motivo de deboche. Vaidade. A aproveita-se da bondade e da inocência e se explora e humilha. Não os levam a sério, não os respeitam, depois surpresos e indignados com a revolta. Estou te estranhando, você nunca foi assim. Querem a submissão, mas ninguém se conhece, pode explodir. Se se sabe, seria pior ou entediante, ou mais perigoso, ou, ou. Um julgamento, sem defesa, cada palavra uma ofensa. Falsidades, deslealdade e hipocrisia. Filisteus, dizia Nietzsche. Um dia se verá que somos, e surgirão heróis, louvados e decantados. Especialistas, na mídia, explicando, doutoralmente, o inexplicável. Os meios de comunicação ganhando com a miséria do mundo. Mentira deslavada empurrada goela abaixo, o rebanho a recebe num misto de medo e prazer. O diferente, vilipendiado e humilhado, seu sofrimento leva a turba ao orgasmo. Não pensar como a maioria, é ser o outro, o infiel, o desleal, o falso, o corrupto e o perverso. Meu velho professor:  Não lute contra esta corja, será esmagado e fui. Ainda aqui, nesta pedra fria. Lá fora, elogios e promoções. Chora a turba. Matariam  mil vezes, se pudessem. Matado já estava, fingiam não ver. Espero que ninguém se mire neste espelho, nem me ache um gênio, nem sentir-se honrado em ser morto. Todos os caminhos levam a Roma, sabedoria é buscar o menos doloroso, embora nem sempre possível. Muitos superam humilhações e abusos, mas, repetindo o chavão,  cada homem é um  mundo. Não se quer entender isto, chocam-se depois, com a revolta do assediado, do humilhado. Não é uma justificação, é reflexão.  Não culpem  ninguém, culpados somos todos nós.  Só o desonesto nega isto. Cometem pecados, dão esmolas. Absolvição, paraíso. Por que não enxergar os negócios sob togas, guarda-pós e batas?  Armas para  vida transmudadas em morte. Agora sou vendido a preço de ouro. Brigam  por uma informação. Melhor recebe, quem melhor paga.  Todos querem tirar uma lasquinha. Nada sabem da história, mas fazem declarações. Pura vaidade. Que não se aproveitem para arrotar valentia. Já nada sou. Que não motejem, bradando palavras que não disse, nem incentivem a violência contra o outro,  as minorias, os diferentes, os desiguais. E vocês, não tenham medo. Daqui pra frente tudo vai ser diferente. Os omissos terão mais cuidado, pensarão mais em vocês. Os hipócritas,  os analfabetos e esnobes, que têm nojo de pobre,  saberão usar as palavras, saberão que a pirraça mata aos poucos, mais cruel do que a ação de matar. Verão o massacre de cada dia, sem o alarde de agora. Monstro, sou, não quando era massacrado. Reflitam sobre os atos do homem, e deixem de fazer espetáculo, só enganam os comedores de novelas,  futebol e carnaval, não os que pensam e se preocupam com o humano. Vocês só se preocupam em mostrar-se, não  em chorar os mortos, porque a morte, como a guerra, só a poucos  beneficia. Lágrimas de ritual, como as carpideiras da Grécia. Um emprego. Alguém me olhou? A conquista de  uma nota no jornal, de  um minuto de fama. Mundo vão. Todos se aproveitam, até o papa Bento XVI, que dizem ter sido nazista, quer aparecer. Por que ele não se ocupa da matança de inocentes nas guerras de conquista no mundo? Com as crianças morrendo de fome?  Por que  não se preocupa em distribuir os bens da igreja aos necessitados? Sanguinário, assassino, monstro sou. Ninguém veio me buscar,  enterrado como um indigente, um qualquer. Vergonha de mim. Sonega-se impostos e não se tem vergonha; Vende-se o próprio corpo por um emprego, um pedaço de pão, uma manchete em jornais e não se tem vergonha; Fabrica-se remédios de farinha de trigo, dosagens falsas e não se tem vergonha; Oferece-se propina em tudo, compra-se coisas furtadas,  roubadas e contrabandeada e não se tem vergonha. Hoje, mais do que nunca estou triste. Enterraram-me. Arrastaram meu corpo, inerte e sem resistência, atiraram-me como bestas-feras. Quem não respeita a vida, vai respeitar a morte? Açougueiros, enaltecidos como heróis. Uma  mídia vomitando  fezes para a multidão tresloucada, tentando incendiar o mundo para apagar com o sangue dos inocentes o fogo que provocou. Não sabe a gentalha que a ela só lhe cabem as migalhas atiradas pelos donos do mundo. Homem, como fostes  enganado pelos séculos além! Sofrestes tu quando eras mutilado no Congo pelos asseclas de Leopoldo II  da Bélgica em troca de borracha? E tu Patrice Lumumba,  por ordem de Eisenhower assassinado? Sofrestes? Amarrado à traseira d´um caminhão, arrastado até Leopoldville.  Executado aos olhos de Tschombe. Te deram defesa? Sofrestes? Exumado por Soete, imerso em ácido e incinerado. Não deixar vestígios. Sofrestes tu Lumumba?  Sofrestes tu quando o papa Urbano II deu inicio às Cruzadas? Homens, mulheres e crianças matando e morrendo em nome de Cristo? Chorastes a carnificina de muçulmanos, árabes e "infiés" que não se submetiam à cruz? Rebanho de noveleiros, fanáticos do futebol, claquetes de programas televisos.

 Mentem como cão danado, falaram em suicídio. Havia escrito uma carta, ainda bem. Tiveram de me engolir. Senão seria outra farsa. Heróis de mentira. E o rebanho engole. Os sonegadores de impostos, os compradores de votos e de cargas roubadas, os falsificadores de licitações estão rindo como hiena na carniça de tudo o que acontece e gozam num orgasmo universal a derriça, instigada pela mídia. Logo, logo que estes profetas se tenham desincumbido desta sórdida tarefa serão defenestrados,  jogados no panacum de cascas podres por esta mesma imprensa e poder econômico que hoje lhes balançam o turíbulo.  




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terça-feira, 12 de abril de 2016




















Num só pé como a bela Empusa, como Saci-Perêrê, andou, andou. Aba sui aba supé. No prego, o pé furou,  su alma, enterrado. Vidrocaco abriu seu pé, no atravessar rua. Teresinha chama, Teresinha. O pé cortado, curar?  Curado,  pó de café, curado. Ele apareceu de repente com uma lupa na mão, colocando em frente a seu rosto, arrastando-o, como a um sonâmbulo, hipnotizado. Arrastando-o como se arrasta uma zorra. Apelidaram-no de Boi, não se sabe porquê, e, todos lá no colégio o tinham por boi, sem a sabença de qualquer outro nome. Dizia, o povo da roça gostar muito dele, porque não tinha a fiduncia  dos doutores da cidade. Ela era baixinha e tinha um cabelo loiro e um sorriso eterno que se trancou quando ele disse que a amava. No colégio perceberam,  não mais se falavam. Não mais caminhar em liberdade, té  Bruno Seabra, falar, falavam de tudo e coisa nenhuma. Um vendaval os sacudiu atirando-os longe um do outro. Neófito nas coisas do amor,  não atinara que um não poderia ser, no futuro um sim. Lhe deu as costas per a sempre. Agora procura em vão sua beleza, que será certamente como a Duília de lindos seios que Aníbal viu um dia. Onde estarás, doce pássaro de minha juventude? Lágrimas vertidas n´escuridão de minh´alma, fostes em vão. Tempo devora vidas. Ah, trampolinagens nos quintais, vida menino. Vade se cagou todo, quando a velha Rosalina, segurando-o pelo braço, começou a bater-lhe. Do pé d´araçá pulei por riba da cerca, sem tempo de avisar,  quando irrompeu, manguá na mão, por trás das árvores, velha, feia e rabugenta. Joga chapéu, Vade.  Ficou chapéu, araçá veio, rolando pelo chão, cair em minha mão. Solto Vade, ficou o chapéu, denunciador troféu. Roubados  araçás comidos debaixo da quixabeira, no açude, em terras de Antonio Oliveira. De seus  fundilhos, Vade tirava tolocos saídos na agonia, enquanto a  velha lhe batia. Chapéu prova do crime, denuncia Rosalina, uma sova em cada um, mãe é pra bater, escola do sofrimento, torna o homem,  homem. Pequerrucho e novo, Subi no pilão. Caído  sobre pernas e cabeça. Machuca pilão, cambota fica. O pé do jegue. Recebi uma patada. Esmeraldo, vai buscar hortelã nas poças. Nanã machuca hortelã, nos olhos põe, ensanguentados pelo coice.  Inda hoje, ninguém desta  travessura.  Jumento é bicho manhoso, quando sestra, sai de baixo. Na queda, nem a de cavalo. Quando o tino vai chegando,  aprende-se  a lutar com os bichos, que mais parece gente, não falam, mas entendem o que se diz. Um pouco, gente. As fêmeas são até mulher de muito macho, que aprende com elas os segredos da machice. De vez em quando tem um desastre. Arbino não morreu de jega? Pois morreu, foi comer, saiu comido, caído, de braga aberta  achado, pelo coice, d´ovo inchado.  O véi Quinca foi com  bezerra, encontrado no curral, ensangüentado. Quinze dias durou,  a conta de contar, com pejo, o sucedido. O dedo na porca e olho na porta, até estremecer de gozo. Valdemar mandava buscar espinho de mandacaru pra furar as bolhas de bexiga, antes que ela o  matasse, como matou Ramsés V e Luís XV, O Bem Amado. Saía-lhe um pus amarelo. Lenço limpando  a carupemba.  Sai de perto menino, bexiga pega. Se não chovia,  bebia água salobra da presa de Pedro Carneiro. Na feira, Pedro  vendia água de pote.  Está chegado em Capela, meninos marcham em roda da carnaúba, um tambor marcava passos indecisos.  Viu Zé Mancambira  no oitão da casa de Lane, última  na estrada do Noventa. Arremeda  o zunido de um carro. Seu mantra, seu calmante. Arreliavam dele, em sua capa colonial. Roque de Damião gostava de fazer medo.  o mundo ia acabar. Dona Juliana gostava de mijar em pé.  Abria as pernas, xíiiiiiii. Não se importava que a gente visse o rego se  formar. Canta, canta  Maria Pinhão toda tarde, a tarde toda. Roda Pião, roda pião, roda pião.  Dona Rola se  irritava com a inticação da Pinhão. Perder seu marido de vez a Pinhão não  leva não. Não chore não, Lé / pra que chorar,  Lé, / a vida é esta / um amar, outro gozar, Lé. As tanajuras, enquanto vida ainda lhes sobrava, esvoaçavam, esvoaçavam no verão das chuvas primeiras. Zuuuuummm. Os pernambucanos, calejados da seca, as pegavam, concorrendo com pássaros e tatus,  par comer assadas. Cortavam-nas pelo abdômen as jogavam na frigideira, com manteiga ou seu próprio óleo amarelado. Herança de nossos índios e já apreciado por Anchieta e Gabriel Soares de Souza, chegados numa bundinha de tanajura. Cai, cai tanajura na panela da gordura!  Cheiro danado.  Hoje comprovado, fonte de proteína mais que o boi, até projetos em estudos de criatório de formigas e outros insetos. Suprir o mundo de proteína, cada vez mais cara com as carnes tradicionais. Não dizem que formiga faz bem pra vista, e nunca se viu um tamanduá de óculos?  O povo é sábio:
Não existe melhor cura
P'ra doenças de garganta
É bunda de tanajura
E injeção não adianta


Sertão, o flagelo da seca. Morre-se de sede e fome. Estão os homens interessados nisto? Tão barato um poço artesiano. Não, o dinheiro  é só  pras orgias, metrôs, campos de futebol. Grandes obras enriquecem. Mais empresários que políticos, pobre paus-mandados.  Daniel aleijado trabalhava na semana e nos dias de feira pedia esmola. Mordendo a língua  concertava arreios, fazia bainhas. Facas, facões, punhal e punhaletes. Vindo d´aroeira, criou filhos, com exemplo de coragem e abnegação.  Cirilo remendava  sapatos, rindo a morrer do sucesso triste. Só se ria de miséria. Um Diógenes remendão se rindo da miséria do sertão. Que mal havia no mundo que não fosse pra purificação do homem? Não se chora do mal, ele é nosso mestre.  Quem com ele não aprende, com mais nada aprende. Melhor a loucura que o prazer, embebedar-se com o prazer escurece a mente e nos deixamos dominar pelos mais fortes e mais sagazes; Da vida só precisamos viver, melhor viver entre corvos que entre bajuladores. Os corvos só comem os mortos; bajuladores devoram os vivos. Ri é o melhor remédio. Mata tua angustia e a do próximo. Cínico ou estoico  tu Cirilo ensinastes até a quem não imaginastes ter como aluno. N´Aroeira, Pedro Marcilio, vaqueiro,  pega boi no calumbi.  Toda feira bebia, a feira toda. Enciumada de Angerca,  Pedro Marcilio furou, com peixeira na barriga, corria  Constança,  gritaria,  bofe e tripa segurando.  Pedro Marcílio afamado, vaqueiro, dele diziam, caparia de um só golpe, um cabra de Lampião. Dona Oláia fazia suas lapinhas imitadas, mas não igualadas.  Dézinha gritava sua dor, olhos negros sobre todos. Medo? ou proteção  querias?   O povo, sim, tinha medo. Alma penada no mundo. Encosto de  noivo morto.  Paixão. Fuga de noivo, na  lua cheia, na garupa traçoeira do alazão,  amiga leva.  Encarnação do tinhoso. Se fosse na Idade Média, os padres já a tinham queimado,  como se queimou Joana D´Arc, depois virada santa. De possuída a santa. Dizia falar com Deus. Quem és tu pecadora, pra falar com Deus?  Dos mais santos poucos papearam com ele.  E tu presunçosa, blasfemas contra o senhor, dizendo conversar com ele? O que tu ouves? Não é mesmo, a voz de Belzebu, fingindo-se de Deus?





Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.