segunda-feira, 16 de outubro de 2017

PINGO-PINGO







Fedor Ivanovitch Chaliapin,  “Minha Vida”. Lê. Um livro e a lembrança do palhaço  Pingo-Pingo. Chaliapin. Minha vocação de ator? A Marmonov, devo. Jacob Ivanovitch Marmonov. Tinha doze anos quando o vira atuando, numa barraca de natal. Iachka, (Assim era conhecido em todo volga) cantor e clown, de meia idade, físico notável, um tanto bojudo, de bigodes negros e espessos e olhos ferozes,  divertia o povaréu inculto.
Brasil, sem a tradição  da Rússia, o mais cabotino pode superar grandes dos nossos. Isto não impede um palhaço de circo mambembe influenciar algúem para a arte.  
Pingo-Pingo. Quanta ingenuidade, e no entanto, quanto admirado, por nós crianças e adultos. Foi ele, meu  Iachka? Serás lembrado  nos camarins da Escola ao se maquiar para um espetáculo, o professor João Gama corrigindo o exegero.  Quem nunca viu, venha ver -  Em coro, a garotada: Pingo-Pingo vadiar. Oi de lá, venha ver. Pingo-Pingo vadiar. De rua em rua, em Capela, seguiam as pernas de pau, anunciando o divertimento. Tinham entrada garantida. Um homem comum, começava a crescer, (nem precisava as pernas de pau), com as tintas encombrindo o rosto.  Anos depois vai ouvir. É como se eu fosse deixando de ser Luiz Carlos Vasconcelos e me tornasse pouco a pouco o Xuxu.  Assim nos sentíamos, de cara pintada, transformados. Orgulho em ser pintado até que nos obrigassem  a desfazê-la, sob  protestos e choro, a marca de entrada, no braço, não poderia ser desfeita.  Eu, às escondidas e  a contragosto de papai, seguia o truão, coisa de moleque, dizia. Inveja dos outros. Seus pais não ralhavam e até gostavam, alguns.  Apanhar, não apanhava. Apanhei pouco. Era só um olhar e tudo parava. Assim, com a bola,  em frente a casa de Maria Pinhão. Bola de meia batendo nas portas ou caindo nos telhados.  Era assim, se pegava num  badogue. Coisa de malandréu, dizia.  Ator, nem em sonhos, nem mesmo sabia o que era, mas ali, talvez a iniciação. Mistérios dionisíacos. Mais tarde, na Europa,  enquanto lava um prato e outro, atua. É marroquino e turco. Apache do Tororó, Cavaleiro de Bagdad, indiano e ciclista no Les Cracks de Alex Joffé com Bourvil,  Robert Hirsch e Monique Tarbès, bulletin de paye, trinta novos francos ao dia, chez Regina. Pierrot em "Amor e Vida de uma Colombina sem Amor", de Jesus Chediak, soldado e juiz em Exceção e a Regra Brecht/Hackler and so on. Por minha palhaçada,  perdido  o papel no seminário, primeira vez no palco, seria. Aos gritos,  caído no palco. Exagero. Os frades o mandaram descer. Primeira decepção. Horus, espera  tu hora. Da. Vem, vamos embora, que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Vandré. Onde estás agora? Meu coração chora. Onde te levaram as torturas? Primeiro de abril, a caminho da escola. Tanques cercavam a Faculdade. Voltou correndo. Queimam, os estudantes, jornais. Gritos na Praça Municipal. Manifestações. Polícia. Cassetes e cachorros, o couro come.  Correr. Entrou  na Confeitaria Colombo, atravessa o balcão, finge-se de  garção. Que Manolo não me ponha porta a fora. Policia socando o cacete na estudantada. Se já tinha vontade de vazar daqui, agora mais do nunca. O último a sair apague a luz. Meninpedra rola, mas não faz limo.













                                                      
                      Era uma construção bem antiga, onde se encontrava Inicialmente. Não há como descrevê-la por inteiro. As paredes eram de pedra, enormes, retangulares, sobrepostas sem qualquer outro material que as sustentasse. Um corredor grande e amplo dava para uma esplanada maior ainda. Ele seguiu este corredor, ao que parece com outras pessoas. Vê um vasto mercado a céu aberto. Tecidos, joias, bois, vacas, cavalos, camelos, animais, objetos diversos. Andou sobre o muro observando tudo aquilo. Desceu a um curral de gado. Muito gado branco azulado de chifres em forma de lira. Guzerá. Um boi se enfezou e arremeteu contra ele. Foi rápido, pulou a cerca e subiu no muro. Mais na frente, um cavalo, cujo adestrador tentava mostrá-lo aos comerciantes. Mercavam-se preços, davam-se lances. O cavalo se lançou sobre ele. Muito destro, saltou novamente sobre o muro e saiu correndo, buscar um lugar baixo, eis que todo o muro eram alto,  para se atirar fora dali. Quadrada, grande, imensa  a esplanada com suas paredes cobertas de limo, aumentado nos seus quatro cantos onde havia caleiras. Teve de contorna-la toda para encontrar um local mais baixo que pudesse pular sem se machucar. Chegando ao canto do lado leste, jogou-se lá de cima e caiu sobre um lamaçal. Tentou levantar-se, não conseguiu, estava grudado à lama. Gritava por socorro, ninguém lhe ouvia, pela algazarra da feira e dos pregões, ninguém deve ter percebido quando se jogou muro abaixo, ninguém lhe deu valimento. Hora de morrer, calma, não posso perder a calma. Manter-me  tranquilo, como no Farol da Barra. Quase afogado, a calma me salvou. Como areia movediça, mais me mexo, mais me afundo.  Sempre encontrei uma solução para tudo, não é agora que vou me deixar morrer. Mais forte do que eu, sou eu. Agora é pensar, a razão há de vencer, não juízo e sentimentos juntos. Aguenta coração, ajuda tua irmã. Entender o dentro e o fora. Dupla luta. O mundo ao redor, imenso, ínfima pedra lançada ao atoleiro. Dentro de si. Criança escanchada  na mãe, enquanto ela procurava a chave no telhado,  no chão, para melhor procurar. O galo investe contra ele. Esporões no ar quase roçando os olhos. A mãe contra o galo com o rebenque de espantar bichos, preso ao pulso. Minutos, eternidade, horas,  minutos. Na casa de farinha, vamos trabalhar meu boi, conserto de roda, olha este menino ai,  facão no olho fere, vê Nanã nas poças, colhe folhas de hortelã.  Curar  olho ferido. Pai fugindo de casa,  São Paulo trabalhar.  A irmã comeu jaca. Febre, delírio, do tifo. Caroço e casca,  xá do bom, receitou a rezadeira,  curou. Chega a Capela,  cabeçote de Pedrão.  Pedrinho trazia a irmã. vê. A carnaúba. Obra de Joaquim Machado. A escola marchando em torno dela. Não, não vai morrer ali como um porco atolado na lama. Silêncio profundo. Não mais pensar em nada. Em si, nesta hora de aflição. Todas as forças aqui dentro, todas as forças do universo. Seu corpo começa a enrijecer-se, a esquentar, como em febre. O mundo em torno de si. O dono do mundo. Posso e te ordeno. Venham  sobre mim, uma só força façamos. O mundo roda, medo, mas firme. Como um Deus saído do fundo da terra, um jato d´água lhe atinge com força e ele foi-se desligando do l charco e jogado ladeira abaixo, como uma pedra rolando. No fim da ladeira, um beco, a água  empurrando-o  até uma praça, nunca dantes vista, humildes casas de telhas e beirais, azuis, verdes, brancas, amarelas. Pessoas corriam para um lado para outro,  perdidas. Uns tentavam se abrigar na Igreja Matriz, outros fugiam em direção ao mato. Ninguém sabia o porquê. Corriam e corriam ou por querer ou porque empurrados pela multidão. Também  ele saiu em disparada. Chegaram a uma grande área aberta, um campo de gramíneas, pasto para animais, talvez. Extenuado,  caiu e  a multidão, como o estouro da boiada, atropelando-o. Por mais que tentasse se levantar e correr, não conseguia, as pernas lhe pesavam e era como se houvesse  alguma coisa segurando-o por baixo, pelas pernas. Percebeu que as pessoas não o viam, porque passavam por cima dele sem se desviarem. Neste momento, caiu uma chuva, ao lado, viu  uma lona amarela, pegou-a e se cobriu. Algumas pessoas suspenderam a lona, mas ainda assim pareciam não vê-lo. Falou, gritou fez gestos, tudo para que o vissem, em vão, ninguém o via. Não, não pode ser possível, isto é um sonho. Tentou, então, acordar-se, não conseguiu. Sonhar acordado, pode ser bom, mas aqui é pesadelo. Quantas vezes sonhou  sonhando? Quantos sonhos interrompidos e continuados a seguir?  Quantos com a mesma pessoa, conhecida só  de sonhos?  Sonhos dos sonhos, lembrando-se de já ter sonhado antes. Com um esforço muito grande e safanão no ar,  acordou, mas não pode levantar-se da cama, algo o sustinha ali. Sentiu puxarem-lhe a coberta, não era ninguém, uma força invisível fê-la voar para o alto e entrar em uma argola que se desfez.  Gritou. Mamãe, mamãe, esticando o braço  para ela. Veja aquilo, Veja aquilo. Aí sim, viu que estava de novo sonhando.  De vez acordou. O telemóvel marcava  seis horas e cinquenta da manhã do dia vinte de dezembro de dois mil e treze (Pois o mundo não acabou em 2000) não havia galo a cantar, nem galinhas a cocoricar, nem cujubim para chamar o dia mas outros pássaros no pequeno bosque da casa de frente a seu prédio chilreavam alegremente anunciando o novo dia. D´outro  lado, na varanda, suas plantas recebiam os primeiros raios do sol. Coaraci alumiando o mundo. Os primeiros automóveis deslizavam no asfalto húmido pela garoa noturna. Ouvia-se o ruído de um liquidificador vindo de um dos apartamentos. Suave soava o elevador no sobe e desce em sua caixa. Primeiros sons da cidade despertando de seu sono. Uma ambulância passava, sua  sirena  emitindo  ondas sonoras em frequência  para si  desconhecida, mas lhe mostrava o caminho de viver. Gozar o dia, o amanhã ninguém sabe.