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quarta-feira, 20 de junho de 2018










                                           




  Vôo 020320415453 da Nordeste,em 14.08.2003,  vou, na poltrona, encolhido,  afugentar o medo. Passam nuvens, passam, longe e longe mar e terra, terraimar. Se cair, não vou me afogar, não dá tempo, peixes não deixam, me comem antes. Caramba, sacanagem, peidaram no recinto, vai derreter a fuselagem. Gordão ao lado? Por que ele? Gordofobia. Coitado, vai ver, neem. O circunspecto senhor ledor da frente e não daquele lado?  O jovem  ali detrás? Não acredito, jovem não peida, solta eflúvios de juventude. Um peido intelectual, destes que saem de mansinho e, inclementes, rodopiam sobre a vítima. Leal. Porque aspirar flatos, só de amigos, que ao menos um peido não nos negam, embora saibam, o peido,  bom, só a seu dono. A ele alivia, ao outro, agonia. Avante, saiamos,  buscar a paz noutro sítio.
Voo 1907. Aquela comissária, os cabelos pretos como as asas da graúna. Viva Alencar. São quase todas belas. Não exuberantes de arrebatar viajantes, mas suave e aconchegante, envolvê-los na travessia do medo. Que fazes tu, poeta, sobre as asas desta nave? 
Hum mil novecentos e sessenta e quatro. Apenas chegado à maioridade. Como Jango, corrido do golpe militar. O avião da Panair do Brasil para Recife.  Na mala, carta. O diretor da faculdade o recomenda ao mundo. Noutra, do diretor do serviço médico ao reitor da Universidade de Recife. O jovem vai ficar 5 dias, destino Paris,  peço para hospedá-lo na Casa Universitária. Vôo da Amizade TAP/PANAIR para Lisboa.
Em Recife a noticia. Antecipação do  vôo para o dia seguinte.   Esperar no aeroporto. Nada mais chato. Aproveitar. Conhecer Recife, o centro. A zona. Aprender que garçom em Recife é baiano. As putas, como na Bahia. Moiçoilas  abandonadas pelos país, depois que deram para o namorado ou um aventureiro qualquer. No mais das vezes eram simples aventureiros que cantavam a donzela prometendo o mundo. Vitimas de um machismo atroz.  Se eram ricas e nobres o castigo era o convento, se pobres e plebeias o prostíbulo que aliás não fazia muita diferença. Nos conventos as noviças continuavam a se encontrar com seus amantes com o beneplácito da madre superiora, quando não se tornavam elas mesmas amantes de suas noviças. Em nome de Deus, viva a sagrada putaria, ante-sala do céu. Não, os muçulmanos são mais felizes quando morrem em combate, teem suas virgens lá no céu. O céu cristão só tem  velhos e velhas, beatas babando os olhos do Cristo, nu na cruz pregado, insinuando-se sensualmente, mas, noli me tangere.  Quem quiser que faça sua putaria lá na terra e depois peça perdão para entrar no céu, como fazia Santa Tereza. Um serafim descia lá do céu e vinha jogar sua lança nas entranhas da santa, um entra lança e sai lança que não se sabe como o danado não a engravidou. Por certo era estéril, como todo animal híbrido. Se quiser pode comprar indulgências a preço de ocasião. O papa precisa de dinheiro, fazer as Cruzadas,  fomentar as guerras,  conquistar almas para o Cristo guloso.
Me  vi debaixo das pernas daquela aeromoça inclinando-se a pedido do passageiro, acomodar sua maleta. Como te chamarei? Não importa. Serás mais umas daquelas sem nome que passam como cometas por nossas vidas, alumiando, apenas por segundos o espaço sideral. Depois, foi aquela francesa,  velha  chata. Reclamava de tudo depois pedia-me que  traduzisse seus xingamentos. Reclamou quando em Aracaju o avião foi reabastecido em tonéis. Novo para ela, para mim, muito mais.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

ULTIMO SONO















Ouviam-se apenas os estalidos das folhas crestadas pelo sol. Caiam retorcidas sobre o chão quente e endurecido. Nem cigarras, nem pássaros, nem farfalhar de folhas. Não havia. Tudo era plano, quieto e cortado por numerosos caminhos que se cruzavam e não levavam a lugar algum.
Caminhava, por caminhar. Lá e cá, mandacarus abriam seus braços espinhosos. E deitavam sua magra sombra sobre a areia esturricada. Gravatás, xique-xiques e mancambiras ornavam a terra quente e pedregosa. Caminhava. E vi seu corpo moreno estendido ao longo de uma vereda.
Sob o céu azul, inúmeros pontos negros ensombravam o chão, outros pousavam simplesmente sobre galhos de mato seco. Angicos, sumarentas quixabeiras e sempre verdes juazeiros. A boca entreaberta deixava adivinhar pedaços de carne sujos de sangue coagulado. Outros, arrastavam-se pela areia carregando a carne que era sua. Alguns dormiam a sesta, após saciarem-se do banquete que lhe fora oferecido.
Seu corpo moreno. Seus olhos, antes feiticeiros, travessos, eram dois buracos negros que levavam não se sabe aonde. Seus seios. Pequenos, sensíveis - quanto eu os afagara! – agora, assemelhavam-se a dois pequenos formigueiros povoados por larvas e vermes hediondos.
Seus lábios. Antes doces e suaves, tinham o gosto de sangue putrefacto.  O corpo todo, antes, repleto de graciosas curvas sacudidas por vibrações eletrizantes, deixava antever, aqui e ali, por entre as chagas supuradas, toda sua conformação óssea.
O monte de Vênus, onde se escondiam supremas delicias, era uma cratera imunda visitada por moscas, mosquitos e aves de rapina. Estas, apoderavam-se, de quando em quando, de seu corpo, de sua carne, indo ao depois  brigar ao longe pelo maior bocado.
Eu me acerquei cambaleante de minha amada. Exalava um fétido ar que entrava em mim,  provocando-me náuseas e vômitos, como  se tivesse bebido todas as adegas do mundo.
Fiz-me forte e me acerquei mais ainda de seu corpo. E minhas pernas dobraram-se. Meus joelhos sangraram o solo que o sol queimava. Com o estrépito de meu corpo sobre o chão, afugentaram-se algumas aves que insistiam e aproveitavam-se dos últimos bocados de minha amada. Planaram preguiçosamente, pousando aos poucos  em mandacarus de braços abertos.
Meus olhos regaram  o esturricado  chão tropical. Meus braços abriram-se e minha boca. Triste foi minha voz não encontrar eco. Ela sabia que eu amava sua voz. Mais triste ainda foi não ver o seu sorriso, nem ouvir os seus gemidos. Os mais belos.
E ali. – Eu – à vista de seus últimos e mais fiéis amigos,  realizei o meu derradeiro e interminável ato de amor. E abraçado aos seus restos, fui-me apoderando de uma sonolência tranqüila e galopante. E fui dormindo. Fui dormindo. Dormindo. E dormi. Meu ultimo, mais sereno e infinito sono.
Caminheiro que viajas a lugar nenhum,
Quando passares, por aqui,
Apanha um lenho qualquer e nele inscreve:
Aqui jaz um homem que amou
E sua amada.




(Publicado com pseudônimo El Carmo na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança - Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).
Na Coletânea de Contos – Ed.  Scortecci, 2009, São Paulo-SP. Pseudônimo El Carmo.
In,  http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.