sábado, 20 de maio de 2017

VIAGEM A BONFIM DE VILA NOVA DA RAINHA






Pedes que te conte o acontecido, em quatorze  de junho de 1990, para que possas com veracidade narrar aos pósteros. Contarei à maneira de Plinio Cecílio Segundo, ainda que me traga horror e tristeza.
Cheguei às 12 horas a Senhor do Bonfim de Vila Nova da Rainha, Arraial do Senhor do Bonfim da Tapera, ou ainda Arraial da Missão do Sahy, indicado pela OAB, assistente de acusação no júri do homicídio de Helio Pombo Hilarião, advogado assassinado, tal Eugenio Lira, por defender posseiros. Fui ao fórum, ver o processo e depois, saí, matar saudades. A catedral, um barroco tardio,  singela, mas, torres imponentes. O prédio da prefeitura, amarelo ocre. O Colégio N.S. do Santíssimo Sacramento (Sacramentinas). Sonhar. Donzelas belas por seus corredores. O Ginásio S. Coração, os Maristas, de imponentes palmeiras reais. Jovens sertanejos buscam a sabença.  Companheiros de badogadas em Capela do Alto Alegre, falavam. As moças do Sacramentinas iam à missa no Marista, ou quando iam eles às Sacramentinas. Não mais olhar o Senhor na cruz, ver nas estudantes o amor carnal à Bernini. Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, em êxtase, cabeça para trás, boca entreaberta e pálpebras semi-cerradas. A mão do.anjo toca suas vestes,  descobre-lhe os seios. Com a outra, segura uma flecha, aponta suas entranhas, já penetrada outras vezes. Dor e prazer. O corpo, envolto em vestes drapeadas, levita sobre  revoltos lençóis. Da expressão podia se ouvir palavras: Um êxtase caiu sobre mim tão de repente que quase me ausentei de mim mesma. Eu ouvi aquelas vozes, agora  eu quero falar não com o homem mas com  anjos.  Perto de mim, um anjo apareceu em forma humana, em sua mão eu vi uma enorme lança dourada e na sua ponta de ferro, parecia haver fogo. Eu senti como se ele a enterrasse várias vezes em meu coração, de forma que penetrou todas minhas entranhas. Quando ele a puxou, tirou com ela minhas tripas, e me deixou totalmente inflamada com o grande amor de Deus. A dor foi tão grande que me fez gemer várias vezes; Que gemidos. Ver o casario antigo, A igreja N.Sra. da Maravilha, a Cruz da Redenção, na Antônio Gonçalves, A casa  do Coronel Antônio Félix Martins, hoje, o bispado, e onde se hospedou Ruy Barbosa, única do sertão por ele visitada,  Terra do Bom Começo, chamou-a. Um intelectual livresco, alheio à realidade brasileira. Caçadores de ouro e pedras preciosas nas minas de Jacobina, boiadeiros, tangedores de gado, descendentes, empregados de Garcia D´Avila; Paiaiás, pataxós  e Kariris correndo campo, abatendo o tapir; negros servindo brancos,  fugindo para o quilombo de Tijuaçu; O encourado vaqueiro lascando a catinga, derrubando o pé-duro; moças casamenteiras adornando missas na catedral. As meditações de  Anatole France: E se procurarem saber porque é que todas as imaginações humanas, frescas ou murchas, tristes ou alegres, se voltam para o passado, curiosas de nele penetrarem, acharão sem dúvida que o passado é o nosso único passeio e o único lugar onde possamos escapar dos nossos aborrecimentos quotidianos, das nossas misérias, de nós mesmos. O presente é turvo e árido, o futuro está oculto. Chega à estação do trem. Um prédio sem estilo, laivos do barroco, ainda assim belo, de 1944. A linha férrea, de 1887. Fotografia da primeira estação, demolida. Um onjunto harmônico:  armazém, casas de funcionários. A destruição do passado;  Uma paisagem ainda bucólica. Ao fundo, Serra do Gado Bravo, Cordilheira do Espinhaço. O fim das ferrovias em beneficio das montadoras de automóveis e industrias afins.
 Ali corria a  vida. Reunia-se, ali aos domingos, depois da missa. As novidades da Bahia. Beber, papear, namorar, fofocar. Malas e pacotes embalavam anseios. Pressa, apreensão de quem parte, a miúde regado a choros e abraços demorados; Alegria dos que chegam, rever os seus, encontrar novos. De Lisboa a Paris. Santa Apolônia e Montparnasse, nem se lembra,  Gare Du Nord?  Noite em Paris. Amontoados nos bancos da estação. Brasileiro e portugueses. Hoteis cheios ou caros. Os tugas, órfãos de Salazar, vomitando  a ditadura. Eu, em fuga de 64.  Ah!  estações, um mundo. Onde estivesse, visitava-as sempre a ver, rever, relembrar, e sonhar. Buscar nos gestos, no olhar  o sentimento do viajante. Novas, estranhas terras. Os portugueses. Navegadores intrépidos sobre ondas bravias, enquando a Europa se escondia sob as saias do clero. E ao imenso e possível oceano , ensinam estas Quinas, que aqui vês,  que o mar com fim será grego ou romano:  O mar sem fim é português. Eu, Diogo Cão, navegador, deixei  este padrão ao pé do areal moreno  E para diante naveguei. Vasco da Gama no caminho das índias; Camões gesta os Lusíadas, em Macau e  retorna  a Goa e de um só braço nada, doutro salva o escrito do revolto mar:

Cessem do sábio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; / Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / A quem Netuno e Marte obedeceram. / Cesse tudo o que a Musa antiga canta / Que outro valor mais alto se alevanta.

Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve na livrarias.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

HORDÉOLO


Filomena Moretti, Asturias - Isaac Albeniz


Acorda sonordelento o menino, passa cuspe na remela. Abrir os olhos. Inda a voz rouquenha do guru sertanejo e o responso dos fieis, como vozes vindas do além, ressoam  em sua mente.
                        Maria valei-me
                        Aos vossos devotos
                        Vinde socorrei
                        Vosso amor se empenha
                        Ó Virgem da Penha
                        Penha onde mora
                        Na fonte vital.
E o responso em coro:
                         Na fonte vital
                         Na fonte vital.

Todo menino é rei,  faz castelos de cristal,  encostado ao muro do  quintal. Pensa. Meninpedra, filosofal. Remelento, dedo na mão, esfrega. Tocar terçol. Quenturinha boa pra curar.  Olha o monturo chamusquento. Nojenta alfurja, onde se joga as imundícies. Restos crus, cozidos, palhas de grãos, cereais, panos, molambos, penicos de mijo e bosta, pasto de cães, porcos e  jumentos, galinhas e urubus. Dava um fogo quase morto. Fumo subindo, redemoinhos,  odores que aos animais não parecem incomodar. Queima a toda noite, um gosto especial aos restos  sapecados, como carne de fumeiro ou moqueada. No fim do mundo tudo vai pegar fogo, nojento,  de fazer medo.  Devia ser de água como se havia acabado antes.  Não, água também é muito agoniado. A morte vem boiando, zombando da gente. De braços abertos, estatelada. Pra lá e pra cá. Como bosta n´água. De fogo é melhor. Eterno, transforma, purifica  o homem,  um dia tudo será fogo, disse o obscuro Heráclito.O fogo do inferno, anunciado por Mr. Fanali, sous les toits de Paris. Queima tudo, até os ossos. Adeus viola. Não vem fazendo careta. Enfurecida. De uma vez. Mesmo que se corra. Fuçama de noites mal dormidas, canto aos mortos,boates de cigarros fumegantes entre lábios femininos. Aqui, nem sempre é uma festa.
Filomena, não a Moretti da guitarra em Asturias de Albeniz,  a do padeiro do violão,  também morena, gamela na cabeça, dar comida aos porcos, passa. Toca a viola:
- Pensando no fim do mundo? Tu já tem  juízo pra pensar?
 Tocou na sua matadura. Pôs a viola no saco. Ouvirá Ana Vidovic na Catedral do paraguaio Agustin, o Mangoré,e se lembrará, não sem saudade, de não caber dentro de si, não sem saudosismo,  não tanto salutar, mas com um pingo de vida porque como disse alguém, relembrar é viver duas vezes, lembrará sim, de Lilinha, irmã sua, no  violão, nas noites de Capela. Contraponto aos cagas-sebos no arvoredo, os trinados de sangue, cabeça de cardeal. Canarim, assanha  sanhaço. Xéxeus xiando  sacudidos nos seus ninhos, como bolsas, de gravetos, pelo vento. Polifonia do sertão, milho pilando no pilão, manteiga a chacoalhar na cabaça, Mancambira, a gungunar, remedando caminhão, o  bate-bate na bigorna Zé Cadeira, Zé Ferreira e Tunin Gomes. Bate, bate coração, bate o ferro na bigorna, bate a seca no sertão. Bate o vento balançando a cerração. Bate o vento balançado  coração.Quando tu balança, toda a  terra dança.
  

Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança

Madrugada entrando
E o fole gemendo
Poeira subindo
E o suor descendo
Quem não tava "bêbo"
Já tava querendo
E eu cambaleando
Ia te dizendo
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança

Tava requebrando
E eu naquele jogo
Eu tava me esquentando
Mesmo sem ter fogo
Só batia palmas
De pernas puxada
Como quem atira
Em onça pintada
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança
Quando tu balança
Dá um nó na minha pança 


                      Mas não é mesmo, Gonzaga? Ô macho, manda esta muié parar  qui já tou todo molhado, senão, para o fole Seu Gonzaga, para este fole marvado.



Continuação no livro Noite em Paris, breve nas livrarias.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

ANTÕE CEGO






Tempo menino, de molecada, dos causos contados, vistos, vividos. Seu Antônio, o dia  negociava, tocando  venda com um pouco de tudo, e como toda boa venda, a cachacinha era o carro chefe. Cego,  na gaveta, um  sininho  pendurado, controlar o ogó. Que ninguém se aventurasse a puxar aquela gualdra, o badalo  denunciaria  o larápio. Até mesmo um de seus  filhos foi um dia vítima de sua esperteza. Tentou  afanar alguns trocados.  Dlim, dlam, num pulo, alcançou o aventureiro, agarrando-o pelo saco. Um grito o denuncia, passando a sofrer da vergonha à sova, como costumavam dar os pais  aos filhos em erro. Hoje, até cadeia daria. Munda o mundo,  filhos, não aprenderam a apanhar,  batem nos pais. Pais, tios, avós, e até de irmãos mais velhos batiam, não havia revoltados, ladrões nem trombadinhas. Ou bem poucos. Palavras bonitas, por castigos, psicólogos, pedagogos e quejandos, permissividade a caminho, o culto à beleza, à juventude e discriminação dos mais velhos, dos diferentes. Professores achincalhados,  mortos por alunos.  A pedagogia do medo. O lente é quem tem medo.
À noite, mestre Antônio transmudava-se. “Nesta terra de Índia usam  muito de feiticeiros e de adivinhadores e  mormente nesta costa da Índia que se chama Costa do Malabar e chamam a estes adivinhadores, de canaiates. Gaspar Correia em 1563 sobre o curandeirismo na Índia, prática universal.Tirésias nordestino a todos atende com denodo e heroísmo. Na tasca, labuta o dia. À noite,  templo e magia. Olhos de menino. Acordam cantares lúgubres, o mantra de tambores tangidos. Mãos d´enxadas amainando a terra, o enxó,  tronco, a bigorna gemendo nas tardes, e o  martelo que não é a torre de Sandicove que Joyce imortalizou no Ulisses, comendo.
M´inin´ainda. Olhos abertos para as trevas. Máquina de costura. O correr da roda, o fiar d´agulha sobre o tecido. Plangor de alegria e dor. A sineta chacoalha com força e alarde. Via. Longos vestidos brancos, xales na cabeça, escondendo a beleza das mais jovens. Calças brancas e camisas de punhos longos brancos. Se branco para os egípcios era a cor da alegria,  para o africano afasta a morte, para si,  tristeza e morte. Não se enterravam os mortos de branco?
O desconhecido traz medo, mas também curiosidade. Quando a mãe não queria,  ia sozinho ver. Era só passar uma casa, pelo quintal. Do alto de seu altar comandava a cerimônia e dava inicio às litanias. Sacudia-se um  xexerê e uma sineta marcando o inicio do ritual, a chegada de um espírito levando ao transe um ou mais dos fieis. Quando o espírito era bom se festejava o mais que se pudesse até o axirê. Quando o espírito era mal, todos reverenciavam com temor, mas solicitando, implorando e imprecando para que deixasse aquela alma penada. Na cura do doente, fazia-se  procissões, conduzindo-o embaixo de lenços brancos à maneira de pálio, com varas sustentados por acólitos, acompanhadas de cantos às vezes  estranhos. Deviam sortir efeito, pois  a casa estava sempre cheia.
Santa Maria, Mãe de Deus, dizia o demiurgo, Rogai a Jesus por eu, respondido por beatas e beatos.
A molecada dizia que a certa altura, quando as beatas entravam em transe o curandeiro gritava: Vou virar bicho do mato, pra comer vocês todinhas. Elas respondiam : Primeiro eu, padinho, Primeiro eu, padinho.
Pela fé o homem mata, morre e move montanhas, não dizia o pregador de Nazaré? Como explicar a saga de Matota e Marata, os beatos José Maurino e Maria Nilza que, em ritual da chamada Igreja Universal Assembleia dos Santos, sacrificaram  crianças por afogamento na praia de Stela Maris? Que dizer do pastor Jim Jones da Igreja Templo do Povo cuja pregação  levou quase 900 pessoas ao suicídio na Guiana? Não está escrito?  A cidade, com tudo o que nela existe, será consagrada ao Senhor para destruição. Somente a prostituta Raabe e todos os que estão com ela em sua casa serão poupados, pois ela escondeu os espiões que enviamos.
E Consagraram a cidade ao Senhor, destruindo ao fio da espada homens, mulheres, jovens, velhos, bois, ovelhas e jumentos; todos os seres vivos que nela havia. Ô, Javehzinho escroto. Por que não poderia mestre  Antônio,  em noites de lua cheia, com  hinos e cânticos, gritos e gemidos levar seus pacientes ao transe?

          Santo de Todos os Santos
          Todos venham me ajudar
          Os trabalhos qu´eu fizer
          Ninguém possa desmanchar.
          Sou barro forte
          Massapê, barrostroá
          Sou caboclo da jurema
          Só faço o bem, não faço o mal.


           Mistérios da cura, sem explicação, tudo o que se não pode explicar é mistério. Muitos se diziam curados. Nas noites mal dormidas acompanhava a função até o final. Nunca viu alguém entrar de muletas e sair com as próprias pernas. Rituais eternos, transmitidos de século a séculos. Casta privilegiada, segredos guardados, poder e magia. Em Capela vi, cego sem curar sua própria  cegueira,  cuspir  no chão, fazer lama e, orientado seus acólitos,  passar sobre o olho do fiel tão  cego quanto ele. Também posso fazer milagres. Quando crescer. Começar vendendo passarinho. Pensava, em vigília. Hoje é maldade, contra a ecologia. Crime ecológico. Milhares de animais em extinção. Não se ouve mais o canto da juriti nas manhãs de sol. Comprar  os panos brancos, fazer as roupas. Fazer milagres e enriquecer. Antõe era pobre, por querer, ou por burrice. Eu não, vou ficar rico.



Breve, Noite em Paris, nas livrarias.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

HOTI HUÑ









                        “Levai à minha  amada
                         Estas poucas e duras palavras...
                        Que ela não conte mais, como antes, com meu amor.
                        Por sua culpa, ele morreu,
                        Como, à margem do prado morre a flor,
                        Que a charrua, ao   passar, tocou”.
                        (Caio Valério Catulo, poeta latino,  em Carmen XI)


Salvador, 06 de fevereiro de 1975

                       ANA LUZIA,
Soube que você vai se casar. Cago pra isso, mas aqui estou como prometi,   te dizer algumas coisas que ainda não saíram de minha cuca.

                                                                                                                                                   Je me souviens de toi                 
Il souffit
J´attache la porte de ma voiture
Avec le cordon bleu.

Je me souviens de toi
Quand je prends mon bain
Au savon “chuvas de rosas”

Je me souviens de toi
Et je te déteste
Quand je me rapelle
De tes mensonges bourgeoises
Ah! ma petite fille!
Si tu savais  la douleur qui vient de toi
Pourrais-tu savoir ce qui se passe dans mon coeur?
Garde tes yeux de ma face.
Mon coeur pourra vaincre ma conscience.
Meu coração poderá vencer minha consciência.
Amiga. Amiga? Quero ser o teu demônio. O teu “amigo”, o teu “admirador” o teu detrator.  O imbecil que passou em tua vida. O madeiro que te  conduz ao silêncio. Os dejectos que jogas na latrina. O algoz que te leva ao cadafalso.
Ah! As mentirinhas pequeno-burguesas. Como fazem doer as minhas carnes! As intriguinhas. Os enredos pré-fabricados. A monotonia do que se entregam à mediocridade, dos que tem medo dos sentimentos fortes.
Se eu morrer amanhã. Ah!. Se eu morrer amanhã!. Dormirei la primeira noite fria no teu corpo quente.
O tal que estava esperando você e a prima, a loura, naquele dia lá embaixo na casa de Ivonete foi o Ivon. Mais uma das suas. Se eu chegasse naquela hora você tinha se mandado e eu ficava a ver navios. Aliás, fiquei. Você aproveitou o embalo e zangou-se de araque. Bruxa e criança, você é.
O rio leva a água pro mar. O mar solta pro ar. O ar descarrega no rio.
Passo pelo Hospital Português. Podridão. Pelo hospital português. Ódio. Hospital Português. Dedicação. Português. Amor. Arrependimento. Passo. Passas. Passo. Passas.
                  
Aquele chocolate sujou  mîa boca.
Aquele chocolate não deveria ter vindo
À minha boca.
Aquele chocolate  arde  minha boca.
Aquele chocolate
Teus olhos, chocolate, teus olhos;
Cortai
Todas as linhas para Brasília
Cortai
Todas as linhas pra Bel’ Horizonte
Cortai
As linhas do meu coração.
Eu nunca digo adeus
Nem, amém.






(Publicado  na Coletânea O RETORNO DA ESPERANÇA  -   Art-Contemp Editora, Salvador/Ba,1996 ).

terça-feira, 14 de março de 2017

HYDRA








Estava tudo claro-escuro. Era um povoado de casas caiadas, esparsas, numa planície de mato ralo e arbustos retorcidos, de onde se via, ao longe, a imponente Hydra. Eu tinha sede e precisava  telefonar.  Um aldeão me deu de beber,  que bebi a contragosto, água barrenta e salobra. Não havia telefones na aldeia. Você pode encontrar água boa e telefones no topo da cidade. Muito e distante e alta estava, teria de andar muito, por íngremes ladeiras. Há tempos não exercitava minhas asas. Chegando ao topo de uma ladeira, fiquei indeciso. Não tinha certeza de que poderia voar.e um tope E foi com enorme esforço que, de um topo de ladeira, levantei vôo. Para Hydra, homem-pássaro. Levantar vôo de pequenas elevações exigia muita energia para manter a altitude e isto me cansava muito, por isso tive  que parar inúmeras vezes. E era outro sacrifício para levantar vôo novamente, porque tinha sempre de fazê-lo do cume de alguma ladeira. Sou como as pardelas de Cipango. Tenho de escalar uma árvore ou qualquer elevação para alçar vôo.
Que alivio quando comecei a distinguir os primeiros arranha-céus da cidade de Hydra. Seus tetos de vidros coloridos refletiam a luz mortiça do sol-poente.
Posei no primeiro teto que encontrei pela frente. Desci à rua. Entrei num bar. Tomei uns goles de um refresco verde vendido por um homem de cabelos também verdes. A sede não morreu por inteiro. Não quis, porém, beber outro trago. Precisava telefonar, ou melhor, tinha vontade de telefonar.
Indaguei das mulheres da cidade. Lindas diziam. Amáveis cochichavam um pouco temerosos, alguns. Adoráveis,  asseguravam, outros, mais convictos.
Andei, por entre ruas, becos e vielas, milhões d´olhos de um vago olhar aflito, cobrem-me o corpo,  assustados e curiosos, mas  pacíficas e simpáticas. Corri, de qualquer sorte era um intruso. Subi num murro e passei para outro mais alto, daí para um telhado de uma casa de onde  tomei vôo, sempre pousandoem prédios mais altos para retomar vôo. Bem  alto, já, vi um teto que era uma cuia. Que era u’a mesa. Que era uma agulha.
Abri os braços-asas na busca daquela que era a dona da cidade. Hydra.
Hydra. Mulher linda. Mulher rica. Mulher inteligente. Mulher-mulher.
E vi no mais alto dos prédios, um lindo terraço colorido e perfumado pelas flores de toda terra. Posei em seu tapete aveludado.
Hydra falava ao telefone. Hydra. Falava ao telefone.
Seus olhos verdes cor de fogo saíram de seu rosto e tocaram minha pele queimada. Seus cabelos voaram e taparam o sol.
O amarelo ficou negro. Eu apenas balbuciei: Eu ... Eu queria telefonar. - Sua presença era o mundo.
Seus braços se abriram. Looongos. Caiu o telefone que se partiu.
Suas pernas partiram,  enormes, para mim.
- Lindo, lindo homem, me  ama.
E vi sua língua em forquilha soltar pequenas gotas de um líquido que me atingiam o corpo, queimando-me a roupa e assando-me a pele. Quis tapar as narinas para não sentir o hálito fétido que exalava, mas pouco efeito fazia. Já estava todo empestiado de sua saliva.
Eu tentava voar e não mais podia. Maior era o esforço, mais perto estava ela de mim. De seus braços que esticavam. De suas cabeças, mil. De seus olhos coruscantes.
Me ama. Me ama.
E mostrava os seios  lindos. O corpo ondulante, qual uma serpente e com o fremir da dança do ventre.
Molhado estava. Queimado estava. Era uma ferida só. De sua saliva. De seus olhos.
E vi minhas asas caírem. Meus dedos. Meus braços. Minhas pernas. Meu corpo. E o nada..
Agora sou.
Sua voz. Seus olhos. Seu corpo. Seu cheiro. Sua beleza.
Eu sou a Hydra. Eu sou Hydra.




 (Publicado  na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança -   Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).




quinta-feira, 2 de março de 2017

A RONDA

                                                                                                                                        (1969)










Nós andávamos de uma rua para outra, entravamos aqui, acolá e sempre tínhamos que sair por que  nos bares não se podia permanecer sem beber. A  rua toda era uma capa espessa de gelo, onde nossos pés afundavam e se endureciam cada vez mais ao contacto da neve que ali se deixava ficar por mais de uma semana. Jussiê, coitado, talvez gemesse mais do que eu  e se lembrasse de sua meninice na catinga seca do sertão do Cariri.
O sertanejo é um nômade e está em toda parte. Todos  fugindo de alguma coisa. Mas de quê? Não sabíamos, nem eu, nem ele. Indignados mas resignados buscavam, como buscamos nós, vencer a própria sorte e talvez trazer de volta uma fortuna que não adquiriria em sua terra. O Nordestino sempre quer voltar. Secas, morte de companheiros de vadiação, profetas barbudos vociferando o nome de Deus, cangaceiros  bradando e imprecando em nome dos pobres e oprimidos, tudo os une e apesar da fuga silenciosa empreendida a cada ano de seca, formam onde se encontram uma comunidade com laços muito fortes.
Andávamos naquele deserto branco e quem sabe? Chorando a falta  de algo que se foi ou nunca existiu. Nossos sapatos molhados, nossas orelhas ressequidas, nossos lábios partidos pelo vento, nossos narizes pingotando, o corpo inteiro quem sabe? Nada  sentiria se estivéssemos encontrado o que sem saber procurávamos. Lutar é inútil, dizia, tudo é inútil, respondia, quase automático. Não há resposta para o nada. Andar sobre a lama da neve, se perguntando para onde ir. Alguém já compartilhara das nossas desditas? Não sabíamos. Com certeza já experimentamos a alegria de se dar, mas a quem? Talvez para ele,  fosse naquele dia  que ajudou a carregar  o caixão  da meiga Genoveva morta  por falta de médicos. Para mim, talvez tenha sido no dia em que chorei quando levaram Virgilina para se empregar em Salvador.
Andávamos. Sós. Corpos também se moviam sobre o gelo machucado pelos automóveis. Nos perguntávamos, por que aquela gente não nos olhava, não via apreensões e tormentos em nossas faces curtidas pelo tropical?
Às vezes, diante do espelho na mansarda de um sétimo andar da Rue  Grennelle, olhávamos  nossa cara e víamos aparecer os primeiros sinais  da desilusão.  E aquele gelo sob nossos pés se derretendo, empretecido pelas rodas dos automóveis, aumentava nossa angústia e crescia a solidão. Uma infindável nostalgia tomava conta de nós, fazendo-nos odiar aquele mundo tão rico e tão mesquinho.  Ainda assim, eu queria ficar, ele queria ficar. Mostrar ao francês de que é capaz um baiano e um cearense no mundo. Mostrar que o sertanejo é, por cima de tudo, um forte, como bem disse Euclides da Cunha. Mostrar que um prato de comida se conquista até com a morte e não se curvar diante da insolência e soberbia do europeu. Gritar a todos os cantos sua indignação perante tão desumanas pessoas, que saqueando o mundo se encheram  de bens e riqueza, deixando atrás de si um rio de sangue e miséria. Ficar. Queríamos ficar, mesmo que a multidão não nos quisesse olhar, ou que todos os proprietários nos expulsassem, como  o do bar que nos expulsou, por não termos dinheiro para beber. Dehors étrangers de la merde, ouvimos, contentes, todavia,  porque nos mostramos mais fortes do que ele, instalado atrás do balcão, protegido pelos metais, que sabíamos terem roubado das colônias. Furioso ficou, quando a todos os pulmões, sorridentes, bradamos: Ladrões da America, Ladrões da Asia, Ladrões da Africa. Ninguém resiste a um protesto não violento. O cara fica possesso. E isto é uma vitória. Estrangeiros, éramos estrangeiros.   É direito do homem à vida e logo à migração. Fronteiras só  para delimitar países, não para impedir o direito de escolha onde viver. Discriminar por  nacionalidade ou nascimento, mesmo que matar. O homem, um só. Terra de todos. Não se tem  direito de impedir alguém de escolher onde deve morar, sobreviver.  Esquecem, os estrangeiros fizeram a fama de Paris.
Voltamos ao nosso quarto na Rue Grenelle e tivemos mais um dia de frio, sem comida, quase, e sem trabalho.  Eu um artista frustrado. Ele um político atormentado. Onde estará agora quem primeiro sequestrou um avião na Europa?


     Continuação in NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

(Publicado  na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança -   Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).







quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

NÃO MORO COM ELE










                     



                                       


                           Por quê tu me perguntas isto? Que diferença faz? Estrambótico, do vestir ao sorrir. Rei da cocada preta. Não, não moro com ele. Se joga. Não o quero. Nem mesmo pra passear meu cachorrinho. Me encanta, o poder, não me assusta. Quem o inferno visita, com os demônios se acostuma. A amígdala cerebral se acostuma com os atos desonestos, confirma o ditado. O mal pela cabeça, antes que ele cresça, afaste-se. Aprendi a me desvencilhar. Viver é uma arte. Emeios, zapes, bilhetinhos de coraçãozinhos. No lixo, jogo. Mesmo sem concordar com alguma coisa, faço meu trabalho. Cérebro pensante, coração amante. Desentendida. Amante, o ágape cristão. Ri, te como, um dia. Se a loba descobre. O poder corrompe. Afasta-te do inferno para não te acostumares com o demo. A glória, o general conquista, o soldado, sua. Não dividir. Não me encosto, estou sob seu bastão. Um dia, meu amigo, compreenderás esta engrenagem, quando, feito teu papel, fores defenestrado. Terrível é a vida, mas bela, aproveita-a, que o ódio faz mais mal a quem o tem, do que a quem odeias. E tu, por quê me perguntas? Imaginas tu que obediência é sujeição? Imaginas tu uma paixão assim? Todos nós temos nosso dia de descarte, tão logo termine nosso papel. É o jogo do poder. Marionetes somos, acreditando-nos titereiros, manipuladores, neste teatro de guinhol. Quando nasci, já Euclides da Cunha havia predito: o sertanejo é antes de tudo um forte. Acostumada. Quem comeu paçoca de rapadura, pegou leite na noite, lavou defuntos na morgue da Ile de France, sacudiu de volta, lacrimejantes bombas no longe de 68 não pode ter medo mais de nada, e, tendo, porque a idade nos tira a coragem e nos dá juízo. Fortalecida estou para enfrentar a vida e os preconceitos. Fulos ficam. Bahia não é Brasil. Que a Bahia seja  Brasil para pisarem. Ao me pisar, saem pisados. Não quero ódio, mas resistir ao ódio, ao preconceito, à discriminação. Aqui, sou rainha, imperatriz. Deixem-me ouvir a milonga de Cardoso. Palavras. Me levam ao nordeste. Longe, saudade da toada, dos encantos da boiada, no aboio da vaqueirama. Mas não sou manada. Entrebatem-se, enredam-se, transam-se e alteiam-se riscando vivamente o espaço, e inclinam-se embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada "estoura"... E lá se vão; não há mais contê-los ou alcançá-los.
                            E agora José? Sabe nada, inocente!
                       Éramos. Quando dormíamos de valete, naquele oitavo andar do dezesseis, rua d`Assas, assomando, assáz frequentemente, a vontade de virarmos, cabeça com cabeça. Vontade, só. Tinhas tu, Horus, medo, de quê? Aqui, hoje, morro de vontade. Saudades de pernas roçando, do cheirinho de corpos esquentados embaixo de cobertas mal lavadas, cheirando a nós dois. Não, não tenhas medo. Corre as vistas no passado. Vês? Todos os sorrisos foram teus. Tu te lembras? Escobar me confiou a ti, que não eras seu amigo, entre tantos amigos tinha, só ali no Quartier Latin. Como ficaram com inveja de ti. Dormíamos naquela cama estreita. Cedo levantavas para fazer a menage chez Madame Zurflux. Eu ficava te esperando para ir comer na Alliance Française. Tu te lembras? Tu não gostavas muito de carne de cavalo. Eu adorava. Tu me fotografavas com tua Yashica Mat. quantas fotos ainda tenho! Me querias como atriz. Um filme, nunca saído do papel ou da tua cabeça. O filme? Noite em Paris. Plínio Alberto, sabe? Goza com nossa cara. Sem começo nem fim porque a noite em Paris nunca amanhecia. Viu a gozação, nos dias de congresso? Que saco, quando mostro os ensaios. Eu nem chut! Mostro a todo mundo, só pra provocar, de quem eu gosto, você sabe. Até Escobar, hoje, amigo no feice, tem ciúmes. Arrependeu-se de te ter deixado comigo, quando voltou à Espanha de Franco.