Salvador,
20 de janeiro de 2012
Caro
Amigo,
Corroem-me ganas de te contar segredos presos em mim, desde aquela noite. Coragem? Aqui chegou e morreu. Receios. Falaste, um dia, de indenizatórias. Parentes de vítimas assassinadas poderiam ter reparação pela morte. Com certeza, pagar pela morte de alguém
é mais penoso do que ser preso, porque se sabe que ninguém cumpre o total da
pena e mais cedo ou mais tarde, se consegue a liberdade, mas se mexe no
bolso...
Você
não sabe o quanto tenho sofrido em manter este segredo dentro de mim, sem que
possa partilhar nem com uma pessoa que tenho como meu maior amigo. Foram noites
e noites sem dormir, sem alguém a quem confiar. Sempre confiei em você, mas você teve
uma paquera com ela. Tinha medo, e além disso, você foi sumindo e, claro, tudo diminui com a distancia. Tinha medo de se descobrir tudo, nunca se
sabe as voltas que o mundo dá.
Sabia
que o crime prescreveria ogano e hoje li no jornal sobre a prescrição. Este dia
era esperado por nós, na mais absoluta angustia. Esta noite, como em inúmeras
outras, estive pensando. O crime já
prescreveu, por que não te contar tudo? Ninguém vai pagar mais por coisa
alguma. Por isto resolvi te contar o que aconteceu. Você me havia dito que
tinha vontade de escrever sobre o assunto, mas você mesmo tinha medo. Vou te
contar tudo, não sei escrever como você, cabe-lhe fazer de meus escritos o
que bem entender. Deixar do jeito que está, fazer um romance,
um conto policial, um estudo de criminologia, de psicologia, enfim o que
quiser. Faça de conta que tudo foi escrito por você, eu não quero nem saber de
autoria e muito menos de direitos autorais. Basta, claro que inda tenho medo,
mas seja lá o que Deus quiser.
Você
não sabe, rolou muita coisa antes que se jogasse o corpo dela nas dunas. Hoje
não me lembro de certos detalhes, mas vou fazer o possível para me recordar,
com a ajuda de alguns recortes de jornais que guardei comigo a sete chaves, sem
que ninguém soubesse, e, a despeito das
mil mudanças que fiz, ainda os tenho sob minha guarda.
Naquela
noite, estava como que embriagado, porque não me embriago nunca, mas nem sei
mesmo, se não completamente bêbado, por ter consentido em se fazer tanta miséria sobre
uma pessoa. Hoje me sinto perplexo e enojado. Posso agora refletir o que não
poderia ter também acontecido com você, quando, ainda não familiarizado com as
maldades do homem, em Paris, se juntava a
jovens do mundo inteiro, de idéias estapafúrdias, de formação as mais diversas, e
até mesmo contrária da sua, como você me dizia, nos longos bate-papos que tinhamos,
e se entregavam, às noitadas, ao prazer
próprio da juventude, sem medo algum, porque o medo não é sentimento que faça
morada no jovem, ou mesmo o frequente amiúde.
Você
poderia ter passado pelo que passei, e o que é pior, em país estrangeiro, onde
fatalmente a aplicação da lei é mais rigorosa do que aqui. Porque, juro, nada
fiz pela prescrição, foi ineficiência e
inércia da policia e da própria justiça,
autoridades e funcionários, preocupados unicamente com o contra-cheque
do fim do mês e as "custas por fora", o CPF, complementar da féria do mês que o judiciário
o poder mais corrupto da república.
Gastei
o mínimo, muito embora outros tenham gastado quantia até vultosa pra matar o
processo, fazer chegar a este fim. Em outros países todos nós teríamos um
mínimo de remorso, certamente alguém de nós, arrependido, já teria se
apresentado à justiça e confessado e ai todos estaríamos perdidos. Fui eu que matei aquela mulher. Mas nós somos
cara de pau. O brasileiro morre negando, dizendo mentiras. É incapaz de reconhecer o próprio
erro. Gostaria de saber porquê somos assim. Admira-me quando vejo na tevê, em outros países, acusados de qualquer crime confessarem: "Eu sou culpado". Uns até se matam
perante as câmaras, como fez Robert "Budd" Dwyer, dando um tiro na boca, numa entrevista coletiva, por ter sido acusado de receber, como tesoureiro do
estado, US$ 300 mil, numa barganha. Não confessou, mas fez um discurso digno de
um grande tribuno.
Agradeço
a Deus por meus 47 anos de desafios, experiências estimulantes, momentos
felizes, esposa e filhos maravilhosos. Sem razão, minha vida virou.
Pessoas me telefonam e escrevem
desesperadas. Sabem que sou inocente e quero ajudar. Num país que se vangloria de ser uma
democracia, nada pode fazer a plateia afim de evitar minha punição por um crime que todos sabem que
não cometi.
Malcom
Muir é um juiz conhecido por sentenças medievais. Enfrento, na prisão, pena máxima de 55 anos e multa de 300 mil dólares, por ser inocente. Aqui os juízes não têm pejo
de alardear para a imprensa o que bem entendem, fez Muir. “Sentiu-se mal” ao culpar-me, mas não se sentiu mal em dizer que vai me condenar,
esquecendo-se dos demais envolvidos. Estes sabem da minha inocência, estou como
bode expiatório, não passando tudo isto
de perseguição política. Isto é
um gulag americano.
Acreditam
em mim, peço a amizade que sempre tive e
rezem por minha família, trabalhem por um verdadeiro sistema judicial nos Estados Unidos, esforcem-se pela minha
reabilitação. Que nossas famílias não sejam maculadas por esta injustiça contra mim.
A
justiça e a verdade hão de prevalecer, e,
inocentado, devotaremos o resto
de nossas vidas ao trabalho para criar um sistema de justiça justa nos Estados Unidos. O veredito de culpa da
culpa presumível impera, mas nossa luta irá mudar um dia o nosso sistema legal.
Repentinamente
interrompeu o discurso, tirou de um envelope
um revolver e atirou na própria boca; Correria na estúdio, as câmeras
registrando sua queda a jorrar sangue pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos.
Dantesco? Trágico? Mas a pura realidade, um espetáculo realidade, como nunca se
viu antes.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.