domingo, 9 de dezembro de 2012

A MIRAGEM

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Eu tinha cerca  de doze anos. Ele tinha doze anos. Na roça, onde morava, as moças  que via eram poucas, e somente quando ia à feira de Capela,  arraial a uma légua de nossa casa.  As moças que ele via eram poucas.
Eu me enfeitava todo no dia de sábado, dia de feira em Capela do Alto Alegre. Sábado, ele se enfeitava todo. Era dia de feira. Meu chapéu novo de couro, uma casaca e  alpercatas de cromo. Jogava um pouco de cheiro no corpo, roubado da mamãe. Olhos dançando, no caminho.  Buscam  Mariá,  do Tabuleiro,ou do Bispador. Ouvia a cantiga de roda das noites de lua cheia. A rosa vermelha é meu bem-querer, a rosa vermelha e branca eu hei de amar até morrer. Veria o passo alegre de Quesinha? A mente voava  pr´Aroeira e via Helena, blusa branca, azul a saia, caminhando pra escola.
Um sábado, após haver ajudado a descarregar os burros, fui amarrar os animais e pedi a meu pai. Dar uma volta na rua.
D’outro lado da praça havia uma aglomeração, a mor parte, garotos como eu, em torno de uma limusine. Corri até lá. Um carro. Era nosso espetáculo.
Na limusine, sentada, graciosa e admirada, u´a moça a nos olhar, mato  em tempo de chuva, profundos, eram seus olhos. Os nossos, capim queimado de sol, moviam-se de ponta a ponta do carro e se quedavam na moça.  Seus cabelos,espigas de milho em noite de São João, açoitados como pindobas eram acomodados por seus dedos, qual boiobi, entre folhas. Linda, alta e esguia,  um pé de licuri com sua copa esvoaçando no ar. Mirei, por primeira vez uma mulher, mais que um carro. E vi, todas as santas trazidas por frades barbudos,  numa missão havida meses atrás. Ele via imagens de santas da missão.
- Parece a santa do padre da missão. Bem que pode ser a mesma. Quando crescer quero me casar com ela.
- Que pecado, uma santa  se casar.
Caçoaram de mim, m´inticaram.  Vergonha, tive. Quem não? Corri dali. Sua imagem me seguia, como a do sol posto atrás das serras. Labareda e brasa no roçado,  noite a dentro  em  minha cama de vento.
À noite em casa, após ter ouvido meu pai contar o sucedido na feira,  suas vendas, o dinheiro  apurado, a pinga e o sinuque  no bar João de Maninho, as pilhérias dos compadre  fui deitar-me. Logo adormeci. A imagem da moça me veio em sonhos e me chamava pelo nome: “Dá, estou aqui”. Era uma voz macia como a lã dos cordeirinhos. Os borreguinhos da Boa Sorte, a fazenda do tio Pedro da Boa Sorte. Parecia o arrulhar da juriti de papai Nézinho. Juriti lá na gaiola quer sair. Guardiã que é guardada, pia mansa apaixonada.
O sol crestava mato e secava tanques. A miragem permanecia, fosse lua fosse dia.
Quando o sol caminhava pro lado das serras, eu sempre me entristecia  pois me lembrava dela. Era a hora de apartar o gado e ouvir o aboio de seu Ricardo levando-os ao curral. Da criação, cabras e ovelhas cuidava eu, com  meus irmãos. E quando as nambus começavam a cantar à boquinha da noite, já tínhamos  reunido  os animais na malhada.
Nessa tarde, tinha-se perdido uma ovelha amojada. Buscara-a entre mato, gravatá e cassutinga. Nem berro de mãe parida, nem balido de borrego se ouvia pela catinga. Pendurado em qualquer galho, estaria seu chocalho ou caído seu badalo. Buscar entre moitas e gravatás, mas cansa, sentei na cerca de travesseiro, madeira deitada, boa pr´atravessar, de se  sentar,  e até se deitar. Seu Ricardo tangia o gado. Vortaçucena. Tu é doida, vaca danenta. Azulzinha, ei, ei, ei. Iáaa. Láá. P´ronde tu vai boi combuco? Sai daí, Queli, cachorro embirrento. Queli saía escabreado, queria ajudar e não aceitavam sua ajuda. Vá lá entender o homem. Dá vontade de nem latir quando ele estivesse numa enrascada e não pudesse juntar o gado. Ainda nem sei porquê somos tão amigos dos homens,  eles nem chite... Quando  está precisando, vem com a cara mexendo, chamando, chmando. Se é pra caçar tatu estamos rentes no buraco, cavando, acuando e gritando porque se afobe o bicho.  Eu, mesmo, se deixar eu tomo conta deste gado todo, e ainda aparto as ovelhas e as cabras. Ponho tudo no chiqueiro. Vida cachorra. Tão logo  lhe chama o dono, sai correndo a seus pés,  balançando o rabo. Quem foi que nos amestrou assim? Caçar pra eles, tudo bem, pra nós, nem pensar. Viciar, viciados somos, se depender de nós, morremos  de fome, pode passar por riba da gente um passarim, nem levantar a cabeça pra pegar, lavanta.. Muito cachorro, dizem por aí,  quando está mesmo morrendo de fome sai pra caçar e ai pega tudo que encontrar pela frente, de galinha a urubu.  Quando a seca vem é bom. Tudo que morre é repasto. Osomes  não gostam, pelo cheiro  de  carniça. Trabalhamos como burro, só nos dão restos,  quando se adoece ou se envelhece  nos abandonam. Destino:  zanzar de casa em casa, medigando comida. Infeliz do cachorro se descobre um ninho. De galinha, saqué ou pato coma  os ovos. Éum Deus nos acuda. Escorraçam, batem,  matam, a maioria das vezes. Borrego ou cabrito? nem é bom falar. Noite destas, uma matilha deu num ovil. Se foram sete ovelhas. Na seguinte voltaram. Quatorze dos nossos foram mortos. Vida de cachorro, cachorra de vida.
Longe, na estrada, o tilintar da mula-rainha, não a  da rainha Mafalda, a da tropa do primo Zezinho. Tlim, tlim, delém, delém, din, din, dão, dindão.  Musiquinha irrompendo na catinga. Trotava ele e seus burros. Chegar é preciso, antes de escurecer. Na estrada pra Capela, não é bom passar com o escuro no tanque de Rosalina. Mal-assombrado, alma de Joaquim Machado errava por ali, da casa ao tanque, do tanque à casa, atravessando o caminho, deixando um rastro, uma tocha fria e fervente.
Siriema cantou no longe, como  choro de cãesem noite fria. Bico pro  infinito, implorando o fim ou prenúncio das  águas.  Um bando de papagaios passou gritando, palrando cou, cou, cou. Buscam  os ocos dos paus, onde fazem seus ninhos. Quando estourar as primeiras chuvas de verão a ninhada nasce e vai viver, como seus pais, por cem anos. Que inveja.  A zabelê cantou o canto que lhe deu Tupã. Lembranças, cantiga de roda. Minha  sabiá, minha Zabelê, toda meia-noite,  eu sonho com você. Um gavião passou perseguindo a fogo-pagô.  Ah, um bem-te-vi por aqui. Pitanguassu, pitangussu, ond´tá tu, ond´tá tu. Atirei meu chapéu-de-couro. O anajé pega-pinto perdeu o pino. Fogo-pagô voou, voou, se abrigar  longe na quixabeira. Quixaba minha quixaba vem salvar minha rolinha, daí-me talento tanto, remoçar tanto  preciso. Contente de ter salvado a rolinha, embora tenha  matado muitas, de badogue, e as comido, assadas num espeto.
Um jumento, mato adentro, zurrou. Alardeia potência e resignação. Escandaloso, triste, ameaçador. Ali podia estar a ovelha desgarrada. Talvez estivesse parida,  urubutinga vai  comer o borrego. Ou talvez  um  outro carcará qualquer, já o tivesse feito antes dele. Não basta a sedeque passam desde o nascer, correm também o risco de serem comidos por pássaros sanguinários. Um carcará só devia de comer milho e frutas como os outros pássaros. Porque só ele deveria comer carne? Será que ele era um passarinho de mentira?  Pena, apenas,  enganar os outros?
Do tanque, a voz de minha mãe. Cabeça na cabaça, d´água de beber, camará. De licuri, cacho na mão. Licuri em baixo  da pedra.  Licuri coco miúdo. Dizia ela uma chula. Daquelas que se cantava na raspa da mandioca na casa de farinha. A velha chula, tão velha que o tempo esqueceu quem a fez, que a cantou primeiro. Quem sabe quantos autores a retocaram nas noites de samba e roda, de lundu e canga-pé? Anônimos artistas, poucos entre a multidão de brutos e ignorados como uma cuia de farinha no feijão, comido, cagado, esquecido.
Xô, Xuá
Cada macaco
No seu galho...
Gostava de ouvir mamãe cantar. Mais um gemido. E não um canto. Sentia saudades. Do nada. Não traziam alegria os cantos lá do sertão. Arrastavam-se com dolência e angústia ao modo mixolídio, ferindo-se nas unhas dos mandacarus. Seca secando o gado, cobras mordendo o vivente, assombrações correndo a noite, caipora perdendo o povo,  lobisomem virando homem,  mula-do-padre trotando, cangaceiros zanzando,  jagunços, volante atirando, festas dos Santos Reis, São João do Carneirinho,  bois, batuques e batas, batas de milho e feijão, cantigas de roda na noite, nas noites de lua cheia, chula, xaxado e baião tudo isto é o sertão, terrível, triste torrão.
Uma voz, longe na malhada. A moça do carro de Capela. Suas pernas me faziam parecer anão. Negro, agora, os cabelos, encobertops por um véu  multicolorido, emoldurando um trono. Uma cajado na mão direita, maior que o bastão de  tanger gado. Com a esquerda, segura um laço de onde pende uma cruz vermelha, parecendo madeira.
-Eu estou aqui.
Desci da cerca, atordoado,  assombrado. Sua voz, desta vez, como o balido de um cordeiro. Anho de Deus. Hesitei um pouco no pé da sebe. Seus  olhos se confundiam com o capinzal.
- Vem, sou tua amiga.
- Quem é você?
- Eu sou tudo o que foi, é, e será. Isis, Filha de Gebe e Nute, irmã-esposa de Osiris, mãe de todas as crianças.
Tomei coragem e corri pra ela, tropeçando em pedras, tocos e arbustos. Mais corria, mais distante ficava ela de mim. Seus cabelos se misturavam com as nuvens doiradas pelo sol crepuscular. Trazia  um vestido laranja, colado ao corpo, seguro por suspensórios, blusa amarela com mangas até o punho, adornadas com pulseiras azuis  Não pareciam tecido. Talvez algum metal a refletir os últimos raios do sol poente. Derramou-se uma luz por toda  malhada. Espargia-se uma intensa fragrância de jasmim silvestre, a flor que eu mais gostava e porque chovia suas flores embranqueciam o mato, iãsemin que embriaga as noites do sertão. Ela ia-se afastando como se a puxassem por trás e para o alto. Eu corria. Não me pesava o corpo. Seus olhos, o meu guia, sorriam.  U’a música,  até então,  apenas um ruído, aumentou e escutei sons nunca dantes ouvistos. Mil chocalhos badalando na tarde. Não se via, mas vozes femininas se mesclavam numa orquestração indecifrável. Surgiam luzes e pariam cores e sons, circundando meu corpo, meus ouvidos. Não diziam chulas nem batuques. Nem tambores, nem pandeiros. Era um cantar de palavras. Indecifráveis. U’a música disforme das toadas do sertão. As vozes se misturavam e me vinham como um chamado. Sons como órgãos, violinos, alaúdes,  harpas e liras e cítaras. Às vezes parecia ouvir o doce toque do boré. Fiquei com medo e quis parar. Já não conseguia estancar, por mor de uma força me conduzindocontra  aquela moça. Ela meiga e mansamente se afastava.
 - Não tenhas medo, eu te protegerei, fecharei a boca da serpente, não deixarei que te mordam os bichos que rastejam,  te afastarei das onças e bichos selvagens, não serás tragado pelas águas, nem comido pelo fogo. Eu estarei sempre contigo -  Sua voz pairava sobre tudo. Era um canto, o mais belo. Já não mais sabia onde estava. Meus pés começaram a desprender-se do chão pedregoso. Gritei.
- Papai, mamãe, estão  me roubando.
Grito, no espaço, perdido. Sons, cores e luzes, como a me embalar.  Ela me sorria  e beijos  me enviava. Tanto espanto, por dentre as nuvens, no  carro se aproximando. O mesmo da feira,  obi,  não preto como antes. Sem fumo, nem bulha, deslizava  puxado por dois cavalos brancos. Ela convidou-me a entrar no carro,  tive ainda maior medo. Gritava, que me deixasse ir embora. Não queria ir com ela. Que gostava dela, mas tinha medo. Não sabia aonde me levava.
 - Vais comigo  a um lugar  lindo, sem secas, sem fome, sem assombrações,  nem jagunços.  Só paz, música, festa e cores.
- É o céu? - perguntei- eu ainda não morri. Me deixe ficar, não quero ir. Eu estou com medo.
- Melhor que o céu, lá se vive, sem precisar morrer. Você não está vendo?  Eu não estou morta. Lá não existe morte. Só vida.
Me fez tocar seu braço. Ele tocou seu braço. Cálido. A boca do forno da casa de farinha,  suave como as plumas dos pintainhos. Tinha medo e saudade dos de lá de casa. Com certeza,  já tinham sentido  minha falta e estavam me procurando. Ruindade minha, ir prum lugar tão bom, deixá-los sós na roça passando necessidades, como beber água  salobra da cacimba, porque não chovia, ou pisar  milho pra  cuscuz e comer com feijão.
- Eu quero voltar pra casa, dizia, embora já tivesse compreendido. Ela não me queria fazer mal algum. Quase como um desabafo, num gesto de impaciência, sua voz, seu corpo disse:
- Olha bem, naquele dia, senti  que gostavas de mim e vim te buscar. Agora vou te deixar,  não poderás viver entre nós, não estás pronto, ainda, um dia estarei de volta. Amanha-te, então, amando-me, a melhor maneira de te preparares e logo virei buscar-te.
Senti meu corpo. Desprendia-se daquele carro. Imagem, som, luzes e cores  iam-se afastando. Seu sorriso ia tomando conta de mim. Um sentimento de perda ia-se apoderando de mim. Eu ia descendo e me afastando dela. Adeus, adeus, até a volta,  como uma canção de ninar. Meus pés tocaram o chão. Tudo evaporou-se. Fiquei. Mudo, surdo e  quedo.  No lusco-fusco, ouvi. O balido de um cordeirinho, anhó. Após,  frente a mim, a ovelha, tanto procurada e o borreguinho,  buscando ávido o peito da mãe.
Toquei  ovelha e o marrãozinho rumo à casa.  A lua alumiava a boca da noite. Uma acauã gemeu seu canto e eu apressei o passo.
                     

(Publicado  em  A miragem Antologia Literária, ED. Art-Contemp, Salvador, 1992 e na Coletânea COISA SIMPLES, Edições AG São Paulo; All Print Editora,2010).
Ainda nos blogues:
http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br, com o pseudônimo Deus Carmo.

sábado, 8 de dezembro de 2012

O Banco, o Chão, o Sono e o Sonho





Meio-dia. Ôh sole quente. Estrada buraquenta.  Enfim, cheguei. Mairi, Monte Alegre da Bahia. Cinquenta léguas de Salvador, via Capim Grosso ou Baixa Grande, por onde foi. Verás, verão. Intranquilo desce, tranquila cidade. Olhares, furtivos.  Abram as jinelas, donzelas belas, ´stou chegando.
Meia-noite. Gare du Nord, afinal. Retirar mala, pandeiro, violão, berimbau. Não, não veio, Brigitte, seu  papagaio. Não quis a duana. Frio d´outono no seu rosto, folhas, sob os pés, caídas. Noite em Paris, primeira. Saudades. Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá.
Achou a casa do tio. A benção, Deus te abençoe, abraços, beijos. Como está comadre? Compadre tá bem? Procurar o amigo do pai.  Costinha Jururu, (gostava do apelido que a si deu, preito ao jurubeba, vinho predileto). Carta do pai. Que o apresentasse  à cidade. Orgulho, ter sido o escolhido.  Estão vendo?  A quem seu pai recomendou?  A Costinha, como Pelé fala na terceira pessoa,  não  aos bacanas  daqui.  Jururu não tem onde cair morto, mas tem amigo na capital. Mostrava o escrito. Com prazer e denodo pegava-o pelo braço, apresentando-o  aos da cidade. Filho da  terra, de nossa  gente, da gema, dos primeiros habitantes. Sobrinho-neto do Coronel Francelino de Almeida, homem rico, morreu pobre, pedindo esmolas, por não roubar, ao contrário de muita gente boa  nascida pobre e hoje rica, sabe Deus como. Que discurso, constrangedor,  fazer o quê?   Seu jeito.
Gare  du Nord.  Saint-Lazare?   Busca, hotel. Luzes na noite,  frio gélido  na  cara. Față mea?  Luso andar  em terras de  Luízes. Andar brasileiro na terra dos francos. Olhar moreno na blondice franca. Fumacê nos bares e cafés. Cachimbos,  cigarros, charutos, talvez diamba. O amargo da cerveja na garganta. Na telê, perdido na bruma,  montado em cavalo branco, esganando-se por  suplantar o burburinho, Adamo?, Becaud? Quem canta assim, danadamente?
E o soldado Paulo Cobra, que não é Norato, mas cutibóia, como o cipó,  (Era Koba mesmo. Não, não  me chamem de estalinista, Jaldo Caribé, hoje no reino da paz, - prefiro o inferno daqui -, me fez este alerta), arranjou-lhe a primeira questão: Um desquite, (Divórcio, inda inexistente). A lei: O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges; Não separe o homem o que Deus uniu, berra a Igreja. Cria-se o casamento civil,  arenga: Só Deus pode unir o homem à mulher, opondo-se ao decreto 181  de  janeiro 24 de 1890. Vangloria-se Rui Barbosa. Ter divergido do mestre, Macedo Costa: Porque não era aturdindo as consciências com o  estrépito de improvisos violentos que havíamos de estabelecer a liberdade  religiosa:  - era pelo contrário, inquietando o menos possível as almas, e  poupando a liberdade de cultos que desejávamos firmar na máxima plenitude  e com a maior solidez, a hostilidade das tradições crentes, em um país  educado pelo cristianismo e pela superstição. Temperança,  equilibrio de Ruy;  imposição,  autoritarismo eclesial, no Império e na República, não permite o casamento religioso sem o civil. Sem direito de escolha, proibir dupla núpcias.  Religião, religião.
Um casal, criava com zelo e dengo sua única filha. Escolheram tanto, casou-a com um  jovem vistoso, elegante, um pouco bandavoou. Trinta dias, (não sei), volta, chorosa, arrependida à casa dos pais. Ainda estou virgem mamãe, ainda sou moça papai. O velho pegou do revolver, da peixeira e do facão. Encontrar o genro. Seu vagabundo, seu xibungo descarado. Que houve meu querido sogro? Você ainda me pergunta o que houve, com esta cara sem vergonha? Então você casa com minha filha e depois de um mês ela continua virgem? Hehehe, ahahahaha. Ah, entendi. Como foi que eu casei com sua filha? No religioso e no  civil,  seu moleque. Pois é, sogrinho,  estou primeiro no religioso. Ai, meu deus, gritou o sogro, que minha velha está me devendo mais de trinta anos de cu.
Depois de reencontrar o oficial Mauro Gelado, em Mairi, moreno, o nome já diz,  frio tal camucim, daí o apodo, tenho cá minhas dúvidas. Quem realmente o apresentou ao primeiro cliente?  Mauro, que não é Terenciano, nem poeta, nem gramático, mal sabendo rabiscar certidões, sim, lhe trouxe o desquite  de João Calixto. Provecto senhor. Jovem mulher. A traição, o motorista do prefeito. Ficava mais na fazenda, deixando-a na rua. Educação dos filhos. Vinha no final da semana, quando lhe subia o fogo, normalmente baixo, pela calmaria própria da idade. Fanfarrões, os idosos.  Uma a cada noite, o anoso mente, só cachorro doente. A bicha fica enzamboada, nem sobe, nem desce, uma espécie de limbo, estado indefinido, não é sólido, líquido, nem gasoso. Há sempre um dia. De supetão, pelos fundos, de cara com o amante.  Correu a espingarda do ombro, não teve tempo. Sedutor, (ou seduzido)? espavorido, fugido, chinelos, chapéu  deixados.  Rastros para o desquite. Litigioso, queria, desmascarar a traidora. Como se todos não soubessem. O marido, sim, o derradeiro a saber. Poderia cantar a canção:            
 Mas agora eu sei
O que aconteceu
Quem sabe menos das coisas
Sabe muito mais que eu 
Traições, estapafúrdias soluções. Portugal, 1715,  Dom José assina lei. Ajudar maridos traídos descobrirem sua cornice. Quem soubesse de uma traição deveria denunciar o chifrador, colocando  chifres  em sua porta. Oferenda ao chifrudo? O coito em cama alheia  sempre foi, em qualquer tempo e lugar, crime gravíssimo, quase sempre punido com a morte, a mulher, claro,   pois,  o sedutor, em geral,  nada sofria. A bela Costanza, não muito constante a Bonarelli, o maridão, amou Bernini e seu irmão Luigi, pérfida in bis,  e foi desfigurada a navalhada, a mando do escultor, sob o beneplácito de Matteo Barberini, ou Papa Urbano VIII, de cuja amizade suspeita, gozava o artista. (será que eram amantes? Papas existiram de todo tipo, até mulher vestida de homem. Traveco, o Ronaldinho iria adorar.). Divino artista, homônio, demome. O que não faz um tipo por uma chiranha!
No século XI, a infiel  era  assassinada  na praça, perante uma multidão ávida de sangue e vingança, como inda hoje se vê entre alguns. Tanto rigor não corrigiu o humano. Será mesmo o coito extraconjugal mais gostoso do que o papai e mamãe de cada dia? Esquimós e índios das Américas mais sábios e felizes, sem saber o que é cornice,  até ofereciam suas mulheres, provarem hospitalidade. Fazem sua praxis o ditado, lavou tá nova. Mundo doido. Imundo. Louco mundo. Em  Hong Kong, a mulher traída pode matar seu marido desde que, com as próprias mãos, missão quase impossível, quando se pode matar de qualquer forma a amante do marido. Discriminação!
Na Cité Universitaire. 7 L, Boulevard Jourdan, La Maison du Brésil de Lucio Costa e Corbusier .A carta do português ao amigo Quertezer (pronuncie Quertezer, oxítona. Aprenda. No vernáculo, as palavras terminadas em i (y), l, r, u e z, se não houver acento antes, são sempre oxítonas. Não imitar o anglo-americano. Palhaçada):  Leva ele muita coisa na cabeça e mais no coração. Merece sua ajuda.  Tira das vistas o papel, diz ao retirante. Paris não é  lugar pra gente sem dinheiro. Volte logo, se não quiser morrer de fome, aqui não é o  Brasil. Sentenciou. Quatros  anos depois, mal sabia,  Maio de 68,  retornaria, naquele instante,  ocupar e expulsar daquela Casa  os  bolsistas, filhinhos de papai,  afilhados políticos. Sem conhecer telefonia, toma posse da portaria. Tudo tão confuso, como a própria revolução de jovens. Não sabiam o que queriam, apenas o que não queriam: A sociedade burguesa.
KaRa de fome e sorriso nos olhos de seu povo. Língua ouvida, esfarrapada. A voz do sertão. Como o canto do assum-preto, negro como os cabelos d´Iracema, a virgem dos lábios de mel. O sábado menino. Comprar rapadura, dois´tões. Sacos. Sacos de farinha, punhado apanhado, misturar na boca. Ô m´nin, danado. O olhar curioso dos roceiros. Seu traje, seu trato. O filho da terra, um a lembrar-lhe  parentesco, mesmo por trás da serra. Que buscas tu, neste desertão? Voz partida, perdida a cara.
No cartório de Aloisio Leal, (que não se mostrará tão leal quanto o nome diz, tu verás), o dialogo da iniciação nas coisas da justiça. A sarará grita, esperneia, arrasa.
-  Padinho, o sinhô num pode impedir  que eu receba o que é meu. Num sou mais u´a criança. O sinhô só me tem prejudicado o tempo todo. Quero tomar conta do  meu. O escrivão rebate:
 - Sujeitinha mal agradecida. Devia lembrar-se do quanto eu fiz por você.
A sarará. Mulher. Mulher-mulher.
- Sujeitinha?  E o sinhô?  Um ladrão. Covarde. Correu da polícia  federal. Comunista, cagão.  Se ajoelhou  nos pés do capitão. Chorão. O inventaro  é meu, a terra é minha. Só quero o que é meu. O sinhô num pode ficar com a terra toda vida, só porque inventou de ser ventariante.
O bacharel baixou as vistas, envergonhado. Cala o escrivão sentado em sua ira. Não aguentou a catapulta. O escrivão de justiça, que nunca foi da  puridade, pelo poder, ali como se fosse.  O benfeitor da cidade. Tudo sei de lei e da justiça. Inquisidor, meu espanto.  Seguro, muito seguro. Justiça?  ora, justiça! Já fizera muito por aquela gente, dizia. Todos aqui me devem alguma coisa. Isto era uma tapera. Não havia estradas. Cheguei há vinte e sete anos, em lombo de burro. Assumi o cartório. Lia até altas horas. Fui e continuo sendo tudo aqui, porque todos são analfabetos. Era ao mesmo tempo escrivão, delegado, juiz, promotor, advogado, professor, enfermeiro, farmacêutico, enfim, o diabo. Disse-o, veremos. Um recibo, uma nota promissória, uma carta, tudo, enfim. Conselheiro. Fazia as pazes entre marido e mulher. Entre amigos que brigavam.  Fiz o ginásio. Trouxe a luz. A estrada. O banco. Tudo fiz, tudo faço. Tiro Juiz. Promotor, fica quem eu quero. Advogados. Todos me seguem. Sei tudo de justiça. Nunca perdi uma questão. Quem me segue não perde questão. No tribunal todos me respeitam.
- Tá, gostei de você, menino inteligente, conte comigo, sempre. Ajudei muita gente, hoje, bem em Salvador. Juízes. Eu fazia os relatórios. O tribunal nunca  fiscalizava. Dos promotores, fiz procuradores, dos juízes, desembargadores. Deputados, graduados na administração, todos que passaram aqui, (mostrava as mãos) estão bem. Eu os modelei, siga o exemplo deles
Abria, paternais,  os braços.
Busca. de hotel. Cheios, caros. Dormir. Precisam. Não há, metrô, est´hora. Como chegar aos parentes, os tugas? Extenuados. De Lisboa a Paris, no salto (cruzar a fronteira Portugal a atravessar a Espanha a salto, a pé,  clandestino). Pegar o trem, (eles chamam comboio), da Sud Expresso em  Hendaye na França,  que partira de Santa Ifigênia para Paris.
Jovem andante, aventureiro, que te vai pela cabeça? Mocinhas casamenteiras. Não estou pa vocês. Que digam  que me querem, me amam. Gostoso, um gato. Sexo, medroso e incompleto não me satisfaz. Virgens apavoradas, prostitutas mentais, fujais de mim. Afasta meu olhar de teus seios endurecidos. Por que mostrar-me o sexo apenas púbere? Vem-me  o orgasmo mais ligeiro, ouvindo os grunhidos de amor de gatos no telhado. Não me atraem teus gemidos ensandecidos pelo medo. Linda morena d´olhos apertados, cor de mel. De certo, cresce-me o sexo por tua pele acetinada, que se emurchece, se recolhe no seu leito, co´a frieza de teus passos, e a incerteza de teus laços.
Tinha entrado, sem ninguém o perceber. Deitara-se. Vistas  no telhado, de cujas  frestas coava-se a luz.  Os tios, haviam saído. As garotas, na caça,  invadiram, com alarido, o ambiente.  Perguntam  pelo primo às primas. Ouvido atento às vozes. Risos, gritinhos, gargalhadas. Meu cravo, sou tua, o jasmim de teu jardim. Me dá um beijo, te dou tudo que quiseres. Ai, se te pego, eu te mato. Eu te pego lá no mato, delícia. Trá, lá, lá, lá. Káska, hrob, Adad, rad, krk, kriz, krutý, krásny, slepý, mrtev, tev. Ya, yaô,  yô,  ka, ki, pin, pó, porã. Agon.  Amém.
La blonde tem bunda mole. La brune tem bunda grande. Tanajura que me ama. Quero ver você dar sua risada. Pavão misterioso gritando no telhado.  Raposa inebriada  pelo mel. Guaxinim chupando cana. Como gralhas no  galho da jurema. A ema gemeu no galho do juremá. Fim de l´amor, condor. Ay que mi moiro, doncellas.
Morrem as vozes, nomirsti  mundo, que morra. Mrtev, tev. výkrik, krik. No seu peito, a angústia. Abre o livro. Estuda sua primeira questão. Um desquite. “O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges,” dizia o Código Civil. Um divórcio à brasileira. Continuam os dois agarrados um ao outro pela lei, não podem casar novamente.  Inda uma imposição religiosa. Será deputado. Fará um projeto de lei,  casamento por tempo determinado. Não é uma sociedade como outra qualquer? Criará a poligamia. Deus permitiu a Salomão ter setecentas mulheres principais e trezentas concubinas, por que não permitiu aos outros casar e descasarem.  A poliandria também, assim era na Palmares de Ganga Zumba e Zumbi. As mulheres,  bem visto, tem vontade de dormir com mil homens.
Horus, (Chama-se Horus?, um catingueiro?). (Osiris, Horus e Isis,  a trindade. Pai, Filho Espirito Santo). Horus te chamas? O portuga, acostumado aos Manueis, Joões e Josés, pergunta admirado, enquanto lhe passava a botija de vinho para regar o bacalhau seco, engolido no sacolejo do trem.  De nossa mãe, gerado,  sobre o corpo inerme do esposirmão, pousada. Amamenta teu filho, Cheia de Graça. Em folha de revista  achado. O homem não escolhe o nome. Ele é o que aos outros lhes parece.  Nordeste.  Homem e nome são suas circunstâncias. Horus,  Único nas Alturas, o Elevado, o Distante, Senhor do Céu, o Senhor das Estrelas. Que te passa pela cabeça? Olhos chamejam, cheio de areia.
E agora, que fazer? Ao compadre Hugo, uma carta escreverá. (Itambé, em ti me vejo, no Tango de Tárrega. Cai a tarde tristonha e serena, em macio e suave langor Despertando no meu coração a saudade do primeiro amor! Plangia Calheiros do altifalante a canção d´Erotides. Dorotéia Vai à Guerra. Peça de Carlos Alberto Ratton,  sob a batuta de Álvaro Guimarães. Nonato Freire, Dorotéia. Lola di Laborda, Madalena. Produção, Eduardo Cabus. Você tem de ver. Comédia,  um pouco erótica, violenta, e de humor amargo. Dorotéia (Nonato) - velha octogenária - vive com a filha Madalena, longes de mundo. A filha sustenta a velha, mourejando os números, as finanças. Dá comida à “mãezinha”,  lê as noticias do dia, liga-lhe o rádio, ouve suas queixas, dá-lhe o  remédio, ajuda-a a fazer xixi, liga-a ao aquém. Vida versus morte. Dorotéia é autoritária, importunante, irônica, gozadora, sarcástica, egoísta, mentirosa e ladra.    Madalena, honesta, trabalhadora, obediente e ingênua. Lendo as noticias pra sua mãe, descobre a traição do chefe. Casara-se com outra. E ela o ama. La madre fez sua desgraça. Revelou ao chefe um segredo. Não era mais virgem. E Madalena cai numa realidade que ela teimava em não admitir.
Personagens e atmosfera Beckettianos. Linguagem e situações rendem homenagem a Ionesco. Obra original, entretanto, pela brasilidade. Álvaro conseguiu situar-se bem entre os dois polos da obra: Humor e violência. Equilíbrio total. E neste ponto, acredito, tenha o diretor superado o autor. Alvinho como um mágico evitou exageros, fez rir e deu seriedade ao grotesco. Um ritmo admirável. (Que o diga o professor Anatólio, imbatível caçador e  maior autoridade em ritmo teatral na Bahia.  Seu Painel da Peste, de cuja direção fui, com prazer e honra, assistente, comprovam sua autoridade. Um ritmo uno, monótono, sacudido apenas pelo chocalhar das cabras de seu sertão de Araci, afugentando a implacável, de cujo desafiador tridente saíam as cartas que ditavam a vida e morte). Aqui o ritmo vai num crescendo tão suave que não se adivinha o paroxismo a que chega no final. Encurrulados ficamos num ambiente de hospital onde tudo cheira a velhice, doença e abandono. Nonato Freire apreendeu as lições do diretor e a alma  do personagem e foi uma Dorotéia humana, divina e diabólica. Lola di Laborda um pouco reticente, mantendo-se, porém, à altura de responder aos fluidos emanados de Nonato. Vi-o no último fim de semana  em Salvador, você deve ir vê-lo,  um espetáculo gostoso  de se ver. Não posso acreditar que suporte isto aqui por muito tempo.
Treze de julho de 1971. Um dos melhores momentos do Vila.  A adaptação e montagem do Quincas Berro D´Água de Jorge Amado por João Augusto.  Quincas um dos mais interessantes personagens do escritor baiano. O mundo de Quincas com suas  tristezas e alegrias, contudo, solto, livre e leve.  Quincas Berro d`Água, o homem que soube libertar-se das peias da moral burguesa e recriar uma vida junto aos vagabundos e prostitutas, talvez, os verdadeiros donos do mundo.
O início do espetáculo contagia pela música e canto,  vontade de subir no palco e cantar com os amigos de “Berro”. Mais narrada que dialogada, a peça é perpassada por um tom nostálgico e saudoso daquele que foi o amigo de todos. Onde houvesse bar na Bahia se comentava a morte do velho Quincas. Era luto e choro. Um a um ia se inteirando da morte do velho “Berro” e se encarregando de difundir a noticia - : “É feriado na Bahia”. O palhaço Curió dilacerado anunciava na Baixa dos Sapateiros que todo o tecido do gringo Elias seria distribuído de graça pois seu amigo Quincas Berro D´Água havia  morrido. Benvindo Siqueira, deixara boas oportunidades o Rio  e veio curtir o teatro baiano, e aqui, tem feito  trabalhos maravilhosos. Curió na pele de Benvindo  ficará sempre na nossa lembrança. João Augusto atinge em vários  momentos o patético como na cena do cabaré,  apesar de um pouco longa, arrasta o público do silêncio profundo à completa hilaridade. Somos levados à meditação e ao riso, tal a firmeza com que João conduz seus atores. Um pouco prejudicado  o espetáculo  pelos iniciantes. Não foram capazes de acompanhar o ritmo dos atores mais experimentados, quem sabe, pelo curto tempo de ensaios. Em sua primeira aparição o Quincas de Wilson Melo, levou o público ao delírio. Talvez o  melhor momento da primeira parte. do espetáculo. Nilda Spencer na Otacília, mulher de Quincas,  está terrível. Quincas não poderia ter tido outra mulher. Wilson Mello, ao meu ver, o melhor ator da Bahia. Seu Quincas é quente, moleque, gracioso, sarcástico, irônico e, sobretudo, humano. Acredito ter perdido o espetáculo, na segunda parte, apesar de ser a principal, um pouco o domínio sobre o público. Diálogos, alguns,  demasiado longos e, de  certa maneira, despropositados, especialmente, algumas falas  das prostitutas Rita e Firmina. No velório de Quincas  onde as cenas patéticas deveriam existir, onde a denuncia e análise de comportamento deviam ser mais profundas, tal não aconteceu. Maior seria o rendimento se algumas cenas  da primeira parte fossem levadas na segunda, e assim não teria caído o espetáculo. O poético renasce quando os amigos de Quincas começam a despi-lo, vestindo-o com suas verdadeiras roupas e começam a dar-lhe cachaça. Aí, volta o espetáculo ao nível inicial. Aí temos a Bahia e a gente da Bahia. A segunda morte de Quincas é uma apoteose. Quincas nunca deixa de ser teimoso e enfrenta o mar e o vendaval. “cada um cava sua sepultura”, diz. É o ultimo conselho do velho filósofo, o homem que  soube livrar-se das jararacas, construir sua nova vida. JA continua a obra iniciada há alguns anos, levando ao palco as alegrias e sentimentos de pessoas simples, do povo. Não se deve perder a oportunidade de ir ver obra tão humana e creio que você irá vê-lo. Sei que gosta mais de cinema, mas o teatro é único,  não se repete, um só espetáculo. Se o vires, vistes, ou não verás jamais. Um único suporte, o homem. Um ator e o espectador. Nada mais. Nem cenário, nem texto, nem luz, nem roupa, nada. Isto é o teatro. Vá ver e não se arrependerá.
Aqui tudo igual. A cidade, nem grande, nem rica. Poder-se-ia ganhar algum, mas o juiz, como todos, nada faz. Disse-me, rindo. Trabalhar para  encher barriga de advogado? Não muito longe do pensamento de um certo ocupante do Supremo. Todo advogado é preguiçoso, só acorda depois do meio-dia, além de  ladrão, gasta  o tempo  inventando ações com o fito de roubar os incautos. Voltando à vaca fria, a cidade, nem brega tem. Imagina, uma cidade sem brega. O brega é o circo, o cinema e até a igreja de uma cidade. É lá que os homens vão desafogar suas mágoas. Onde todos, prostitutas, proxenetas e clientes se tornam médicos, professores, psicólogos e até confessores. Uma cidade sem brega é uma cidade morta. São elas, as prostitutas que trazem, como os ciganos, lembremos de Macondo, toda a novidade do mundo civilizado. Trazem a moda que a madame, após torcer o nariz, fazem os maridos comprarem a peso de ouro nas mãos dos mascates sírios, libaneses,  todos turcos, dizem, o perfume, a seda e o último borzeguim usado pela Mistinguett em Paris. O juiz mora na capital, e só vem à comarca uma vez por semana. Há um ônibus  que chega quarta-feira. Ele  vem, em geral, neste dia. Mais ou menos às onze horas, o motorista pára bem em frente ao cartório onde também reside o escrivão. Desce o baixinho, (aqui, conhecido como Baiúca, nome de uma cachaça, famosa no momento), e vai direto ao cartório. O escriba o espera.
– Rosa, vai buscar a cerveja do doutor, diz e  a secretária corre buscar o líquido.
O escrínio do meritíssimo tem uma gaveta onde o serventuário coloca a botelha da cevada de cuja fermentação o magistrado costuma molhar a toga. Traça um traço, traga um trago. Algo como tocar fogo n´água ou dizer miolo de pote. Despachos que não despacham, mais complicam que despacham. Não são  despachos, são ebós mesmo. Mais fácil, aliás, livrar-se de um ebó que de seus despachos. Põem as partes numa encruzilhada que nenhum Tranca-Rua seria capaz de tanto. Os processos ficam assim, estado de total inércia, porque não há quem possa  interpretá-los.
O escrivão trata-o muito bem, porque, dizem, lê na sua cartilha, pois só dá despacho realmente eficaz quando o processo é de seu interesse. É verdade, o tal escriba advoga. Come dos dois lados. Existem aqui dois rábulas. Dois velhos rábulas. Nada sabem de direito.  O carapicu faz as petições e eles as assinam, e assim, o serventuário passa a ganhar dos dois  lados. Dos honorários, sua a parte do leão, aos rábulas as migalhas.  Com esta artimanha, conseguiu fazer fortuna. O tribunal sabe disso, providências? que sonho! O juiz, este, nem se fala. Até inteligente, mas completamente envilecido. Vive na sombra do serventuário.  Disse-me que há dez anos  não pega num livro. E precisa você ver com que orgulho fala disso. Além da cerveja, sua outra amiga é a cachaça. O pessoal colocou-lhe o carinhoso apelido de Dr. Baiúca, nome de uma cachaça muito apreciada na região. Ata gosta deste apelido. E é por isso que a comunidade o assimila, já que, a pinga é, nesta terra, o melhor meio de se fazer amigos e a caninha vai se tornando, de  longe, o produto brasileiro mais representativo, entre todos os que aqui produzimos. Bem que poderíamos modificar a bandeira brasileira: Toda branca, uma garrafa e a inscrição: “Viva a cana”. Não foi  a cana um dos nossos maiores produtos de exportação? Não adoçamos a Europa por longos anos?  Não enriquecemos nossos usineiros com a caninha? Ah, sim, ia-me esquecendo. Hoje temos o futebol,  arrasta  multidões, anestesiam mentes. Mas a cachaça  molha a bola  dos Pelés, os cruzados amealhados por cholos e mulatos à custa de pão e feijão.
Ainda na linha do juiz, existe aqui um cara, que de tanto beber,  já não se emborracha mais, porque, se eternizou borracho com o primeiro gole. Oto, também escrivão de justiça. Dizem até que a bebida lhe faz bem, porque lhe mantém vivo e faz milagres. Faz o milagre de, sabendo  falar, não se entende o que diz, e ao escrever, não se lê o escrito. O juiz não o  repreende. Medo de lhe apontarem. Boato, além de bebum,  bicha, xibungo. Aqui nem é viado, só coisa ruim, insignificante, reles. Ser baitola é defeito? Profissões diversammtemmdor,sei,viaoo=iversas t:em amrconsçTodas as profissões têm pamericano, horror e verdugo de gays, gangsters, mafiosos, comunistas e ativistas dos direitos civis gostava de queimar a rodinha com seu auxiliar? Justiça é de garantir-se, não importa que se  desmunheque. Se  é cega, pode ser tudo.  Moral ilibada?  Tão só  entrar na magistratura? Depois, solta-se a franga, torna-se mercador de sentenças. Quando a corregedora nacional do Conselho Nacional de Justiça   Eliana Calmon, declarou existir “‘meia dúzia de vagabundos”  “infiltrados na magistratura”, certamente, peço vênia,  estava errada.
As mazelas da justiça. Culpados os juízes, os servidores, a sociedade. Problema, conjuntural, sobretudo estrutural. Melhor dizer: existe no judiciário  “meia dúzia de homens bons”.
Um poder, a reboque do esforço pela  democracia. Autoritário, fechado, antidemocrático. Onde não existe  transparência, não há democracia, só  corrupção.
Mude-se as estruturas ou viveremos, eternamente,  com a “meia dúzia de vagabundos”,  magistrados, às  vezes, mas não sempre,   reféns do sistema  desde a colônia, servidores se vendendo pra cumprir, ou deixar de cumprir  o dever. Vendudos, como damas teúdas e manteúdas.
Cada povo  encontre seu caminho. Não se deixar embalar pelo encanto da serpente, roubando-nos tempo e capacidade de reflexão.  Futebol, carnaval, novelas, o encanto da serpente,  pão e circo,  mais circo do que pão. Gritar, protestar, exigir ou, nada de reformas,  burocracia e ditadura. A democracia, não é o voto, muito mais que isto. Um juiz  te tem nas mãos, uma vida. Vitalício, democracia?
Um magistrado. Muito, quase infinito poder. Acabe-se com ele.   Será deputado. Apresentará um projeto de emenda à Constituição. Fim da vitaliciedade. Cargos vitalícios, que vergonha.  Rotatividade do poder. O homem não pode ficar, indefinidamente, num só cargo. Estudará e desenvolverá uma tese:  A rotatividade do poder é a  maneira mais eficaz de se evitar a corrupção. Não mais que cinco anos num só cargo ou função. Nem mesmo um policial. Fim do carreirismo até na  Armada. Ninguém mais abusará do poder.  Não haverá político  profissional.  Proibidas reeleições. Juízes, eleitos por cinco anos tão só. Desembargadores,  ministros idem.  Teria um policial coragem de cometer arbitrariedades, sabendo que  tem só cinco anos pela frente? Poder-se-ia permitir, no máximo, a recondução a cargos eletivos, passado um período de tempo. Reeleição, nunca. Nem  síndico de condomínio. Imoralidade, fonte de corrupção. Todos teriam a oportunidade de exercer o poder um dia em sua vida.
Morfeu vem chegando. Bom que possa me aturar. Não sei fata quando serei advogado. Meu caro Hugo, somos mais artistas que advogados, concorda? Inda sonho continuar  nossos projetos, deixados no papel. Publicidade, cinema e artes, inundar o mundo, ganhar dinheiro com o que se gosta. De Glauber a  Mazzaropi. Sem preconceitos. Rir, chorar e pensar. Você se lembra  da Exceção e a Regra? Fiz o soldado e um juiz.  Peça pra pensar, como todo Brecht, mas quem me impede de fazer pasquins?  Arte de elite é fácil, tem-se dinheiro e se vai ao teatro, mostrar-se, mais que ver. Arte pra  pobre, difícil. Não vai ao teatro, tem até medo,  não vai porque não tem roupa,  já me falaram.  Se assim, o teatro tem de ir a elas. Peças fáceis, ágeis, engraçadas e dinâmicas, em praças, nas igrejas, nos colégios, nos campos de futebol, nos parques e jardins, nos terrenos baldios, onde se possa reunir pessoas. Apesar da música ser a arte mais popular, a que mais toca o homem, porque não é preciso entendê-la, basta gostar, o teatro é a única arte que se pode fazer com duas únicas pessoas. Um ator e um espectador. Você pode prescindir de cenário, de indumentária, do som, da luz e até do texto e da palavra, só não pode faltar o ator e o espectador. Pensando assim,  Grotowiski criou na Polônia o teatro pobre, ritualístico.  Não importa o tema, por enquanto, o importante é mostrar-lhe um´outra forma de ver o mundo. Numa temática reacionária, não foi o caso, se  pode lançar um raio de luz libertador. A teoria do distanciamento, de Brecht dificulta,  acho, o entendimento de quem está acostumado a emocionar-se com novelas, e, mesmo jogando com linguagem de fácil entendimento, como fez Hackler na  Exceção, ainda acho melhor,  um pouco  de emoção:  atingir a massa. Digo, vale  muito aquele trabalho. Pena, tão poucos viram. E o diálogo dos soldados, eu,  Alberto Martins e Reinaldo Nunes? No início, saiu um soldado convencional, depois Hackler: Imagina um soldado naqueles confins de mundo. Cê viu o velho Gama? Que vigor João Gama. Se americano, a Broadway, Hollywood, o mundo todo, conhecia. No Brasil, atores, por amor trabalham, às vezes, sem remuneração, Querem ser  vistos, anelos sufocados pela mediocridade humana.
Seu primeiro trago. Meu primeiro trago? Um grogue, café e conhaque. Esquentar o frio. O fumo, não, da paz, da solidão, tragado. Não. Não são quengas as meninas ali, fumando. Estudantes, secretárias, coiffeuses, jovens e maduras. Ouvir Trenet, Brassens, Ferré. Vivem a noite em Paris, a  vida na Gália.
Olhar pendurado nos teus olhos. Azuis, verdeazuis como o mar de minha terra. Teus cabelos mays. Oh Chantal,  mair Chantal.  Fala que te quero  ouvir  Chantal, habibe. Canta, dulce voz em meus ouvidos, um dia terás meu violão. Diz uma canção de ninar. Eu tenho sono. Eu só quero te ouvir. Até dormir e voar e voar.
A voz de Gandra. Estás a dormir, pá? Fala o português e anda. E me acorda de meu sonho.  E anda, e ando. Andro. As folhas no chão, sob meus pés caídos. Volta à estação. No corpo, o banco, o chão, o sono e o sonho. 

Continuação no Livro Noite em Paris, breve nas livrarias.
(Publicado sob o pseudônimo de El Carmo na Coletânea PALAVRA POR PALAVRA, Ed. Art-CONTEMP, Salvador,1992)
Ainda nos blogues:
http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br,













O livro “há-de ser do que vai escrito nele. Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente. Porque desordenadamente acontecem elas.”     
                                                                                   Bernardim Ribeiro                 






A
Cassiano Almeida do Carmo
Maria Oliveira do Carmo
José Almeida do Carmo
In memoriam







Allah, Senhor Único e Verdadeiro

Não me deixe ser atingido pela ilusão da glória quando bem sucedido e nem desesperado quando sentir o insucesso. Lembra-me de que a experiência de um fracasso poderá proporcionar um progresso maior.



Dominguinhos e Vanessa da Mata - Lamento Sertanejo








http://www.youtube.com/watch?v=NruoGDIzYbI&feature=share&list=FLbqWvLMkXMzNblWKH8xZuzA

NOITE EM PARIS






NOITE
EM PARIS




DESENCONTOS






Deus carmo

NASCIMENTO

Nasce, neste momento, o blogue NOITE EM PARIS, uma obra em progresso, livro a ser publicado tão logo o considere pronto para publicação. Capitulos do livro já constam de nosso blogue http://deus-carmo-literarte.blogspot.com.br

Pretendemos editá-lo por intermédio de financiamento público, cuja campanha será iniciada em breve. 

Embora não se faça mais ilustrações de livros, tenho ideias a respeito da ilustração, sobretudo da capa. Há de ter cactos representado o nordeste, a Torre Effeil c uma mulher representado Paris. Seria algo assim: cactos diversos, cabeças-de-frade, rabos-de-raposa, xique-xique, mandacarus, etc. A Torre Eiffel sairia dentre estes cactos e entraria nas pernas de uma linda mulher.