domingo, 9 de dezembro de 2012

A MIRAGEM

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Eu tinha cerca  de doze anos. Ele tinha doze anos. Na roça, onde morava, as moças  que via eram poucas, e somente quando ia à feira de Capela,  arraial a uma légua de nossa casa.  As moças que ele via eram poucas.
Eu me enfeitava todo no dia de sábado, dia de feira em Capela do Alto Alegre. Sábado, ele se enfeitava todo. Era dia de feira. Meu chapéu novo de couro, uma casaca e  alpercatas de cromo. Jogava um pouco de cheiro no corpo, roubado da mamãe. Olhos dançando, no caminho.  Buscam  Mariá,  do Tabuleiro,ou do Bispador. Ouvia a cantiga de roda das noites de lua cheia. A rosa vermelha é meu bem-querer, a rosa vermelha e branca eu hei de amar até morrer. Veria o passo alegre de Quesinha? A mente voava  pr´Aroeira e via Helena, blusa branca, azul a saia, caminhando pra escola.
Um sábado, após haver ajudado a descarregar os burros, fui amarrar os animais e pedi a meu pai. Dar uma volta na rua.
D’outro lado da praça havia uma aglomeração, a mor parte, garotos como eu, em torno de uma limusine. Corri até lá. Um carro. Era nosso espetáculo.
Na limusine, sentada, graciosa e admirada, u´a moça a nos olhar, mato  em tempo de chuva, profundos, eram seus olhos. Os nossos, capim queimado de sol, moviam-se de ponta a ponta do carro e se quedavam na moça.  Seus cabelos,espigas de milho em noite de São João, açoitados como pindobas eram acomodados por seus dedos, qual boiobi, entre folhas. Linda, alta e esguia,  um pé de licuri com sua copa esvoaçando no ar. Mirei, por primeira vez uma mulher, mais que um carro. E vi, todas as santas trazidas por frades barbudos,  numa missão havida meses atrás. Ele via imagens de santas da missão.
- Parece a santa do padre da missão. Bem que pode ser a mesma. Quando crescer quero me casar com ela.
- Que pecado, uma santa  se casar.
Caçoaram de mim, m´inticaram.  Vergonha, tive. Quem não? Corri dali. Sua imagem me seguia, como a do sol posto atrás das serras. Labareda e brasa no roçado,  noite a dentro  em  minha cama de vento.
À noite em casa, após ter ouvido meu pai contar o sucedido na feira,  suas vendas, o dinheiro  apurado, a pinga e o sinuque  no bar João de Maninho, as pilhérias dos compadre  fui deitar-me. Logo adormeci. A imagem da moça me veio em sonhos e me chamava pelo nome: “Dá, estou aqui”. Era uma voz macia como a lã dos cordeirinhos. Os borreguinhos da Boa Sorte, a fazenda do tio Pedro da Boa Sorte. Parecia o arrulhar da juriti de papai Nézinho. Juriti lá na gaiola quer sair. Guardiã que é guardada, pia mansa apaixonada.
O sol crestava mato e secava tanques. A miragem permanecia, fosse lua fosse dia.
Quando o sol caminhava pro lado das serras, eu sempre me entristecia  pois me lembrava dela. Era a hora de apartar o gado e ouvir o aboio de seu Ricardo levando-os ao curral. Da criação, cabras e ovelhas cuidava eu, com  meus irmãos. E quando as nambus começavam a cantar à boquinha da noite, já tínhamos  reunido  os animais na malhada.
Nessa tarde, tinha-se perdido uma ovelha amojada. Buscara-a entre mato, gravatá e cassutinga. Nem berro de mãe parida, nem balido de borrego se ouvia pela catinga. Pendurado em qualquer galho, estaria seu chocalho ou caído seu badalo. Buscar entre moitas e gravatás, mas cansa, sentei na cerca de travesseiro, madeira deitada, boa pr´atravessar, de se  sentar,  e até se deitar. Seu Ricardo tangia o gado. Vortaçucena. Tu é doida, vaca danenta. Azulzinha, ei, ei, ei. Iáaa. Láá. P´ronde tu vai boi combuco? Sai daí, Queli, cachorro embirrento. Queli saía escabreado, queria ajudar e não aceitavam sua ajuda. Vá lá entender o homem. Dá vontade de nem latir quando ele estivesse numa enrascada e não pudesse juntar o gado. Ainda nem sei porquê somos tão amigos dos homens,  eles nem chite... Quando  está precisando, vem com a cara mexendo, chamando, chmando. Se é pra caçar tatu estamos rentes no buraco, cavando, acuando e gritando porque se afobe o bicho.  Eu, mesmo, se deixar eu tomo conta deste gado todo, e ainda aparto as ovelhas e as cabras. Ponho tudo no chiqueiro. Vida cachorra. Tão logo  lhe chama o dono, sai correndo a seus pés,  balançando o rabo. Quem foi que nos amestrou assim? Caçar pra eles, tudo bem, pra nós, nem pensar. Viciar, viciados somos, se depender de nós, morremos  de fome, pode passar por riba da gente um passarim, nem levantar a cabeça pra pegar, lavanta.. Muito cachorro, dizem por aí,  quando está mesmo morrendo de fome sai pra caçar e ai pega tudo que encontrar pela frente, de galinha a urubu.  Quando a seca vem é bom. Tudo que morre é repasto. Osomes  não gostam, pelo cheiro  de  carniça. Trabalhamos como burro, só nos dão restos,  quando se adoece ou se envelhece  nos abandonam. Destino:  zanzar de casa em casa, medigando comida. Infeliz do cachorro se descobre um ninho. De galinha, saqué ou pato coma  os ovos. Éum Deus nos acuda. Escorraçam, batem,  matam, a maioria das vezes. Borrego ou cabrito? nem é bom falar. Noite destas, uma matilha deu num ovil. Se foram sete ovelhas. Na seguinte voltaram. Quatorze dos nossos foram mortos. Vida de cachorro, cachorra de vida.
Longe, na estrada, o tilintar da mula-rainha, não a  da rainha Mafalda, a da tropa do primo Zezinho. Tlim, tlim, delém, delém, din, din, dão, dindão.  Musiquinha irrompendo na catinga. Trotava ele e seus burros. Chegar é preciso, antes de escurecer. Na estrada pra Capela, não é bom passar com o escuro no tanque de Rosalina. Mal-assombrado, alma de Joaquim Machado errava por ali, da casa ao tanque, do tanque à casa, atravessando o caminho, deixando um rastro, uma tocha fria e fervente.
Siriema cantou no longe, como  choro de cãesem noite fria. Bico pro  infinito, implorando o fim ou prenúncio das  águas.  Um bando de papagaios passou gritando, palrando cou, cou, cou. Buscam  os ocos dos paus, onde fazem seus ninhos. Quando estourar as primeiras chuvas de verão a ninhada nasce e vai viver, como seus pais, por cem anos. Que inveja.  A zabelê cantou o canto que lhe deu Tupã. Lembranças, cantiga de roda. Minha  sabiá, minha Zabelê, toda meia-noite,  eu sonho com você. Um gavião passou perseguindo a fogo-pagô.  Ah, um bem-te-vi por aqui. Pitanguassu, pitangussu, ond´tá tu, ond´tá tu. Atirei meu chapéu-de-couro. O anajé pega-pinto perdeu o pino. Fogo-pagô voou, voou, se abrigar  longe na quixabeira. Quixaba minha quixaba vem salvar minha rolinha, daí-me talento tanto, remoçar tanto  preciso. Contente de ter salvado a rolinha, embora tenha  matado muitas, de badogue, e as comido, assadas num espeto.
Um jumento, mato adentro, zurrou. Alardeia potência e resignação. Escandaloso, triste, ameaçador. Ali podia estar a ovelha desgarrada. Talvez estivesse parida,  urubutinga vai  comer o borrego. Ou talvez  um  outro carcará qualquer, já o tivesse feito antes dele. Não basta a sedeque passam desde o nascer, correm também o risco de serem comidos por pássaros sanguinários. Um carcará só devia de comer milho e frutas como os outros pássaros. Porque só ele deveria comer carne? Será que ele era um passarinho de mentira?  Pena, apenas,  enganar os outros?
Do tanque, a voz de minha mãe. Cabeça na cabaça, d´água de beber, camará. De licuri, cacho na mão. Licuri em baixo  da pedra.  Licuri coco miúdo. Dizia ela uma chula. Daquelas que se cantava na raspa da mandioca na casa de farinha. A velha chula, tão velha que o tempo esqueceu quem a fez, que a cantou primeiro. Quem sabe quantos autores a retocaram nas noites de samba e roda, de lundu e canga-pé? Anônimos artistas, poucos entre a multidão de brutos e ignorados como uma cuia de farinha no feijão, comido, cagado, esquecido.
Xô, Xuá
Cada macaco
No seu galho...
Gostava de ouvir mamãe cantar. Mais um gemido. E não um canto. Sentia saudades. Do nada. Não traziam alegria os cantos lá do sertão. Arrastavam-se com dolência e angústia ao modo mixolídio, ferindo-se nas unhas dos mandacarus. Seca secando o gado, cobras mordendo o vivente, assombrações correndo a noite, caipora perdendo o povo,  lobisomem virando homem,  mula-do-padre trotando, cangaceiros zanzando,  jagunços, volante atirando, festas dos Santos Reis, São João do Carneirinho,  bois, batuques e batas, batas de milho e feijão, cantigas de roda na noite, nas noites de lua cheia, chula, xaxado e baião tudo isto é o sertão, terrível, triste torrão.
Uma voz, longe na malhada. A moça do carro de Capela. Suas pernas me faziam parecer anão. Negro, agora, os cabelos, encobertops por um véu  multicolorido, emoldurando um trono. Uma cajado na mão direita, maior que o bastão de  tanger gado. Com a esquerda, segura um laço de onde pende uma cruz vermelha, parecendo madeira.
-Eu estou aqui.
Desci da cerca, atordoado,  assombrado. Sua voz, desta vez, como o balido de um cordeiro. Anho de Deus. Hesitei um pouco no pé da sebe. Seus  olhos se confundiam com o capinzal.
- Vem, sou tua amiga.
- Quem é você?
- Eu sou tudo o que foi, é, e será. Isis, Filha de Gebe e Nute, irmã-esposa de Osiris, mãe de todas as crianças.
Tomei coragem e corri pra ela, tropeçando em pedras, tocos e arbustos. Mais corria, mais distante ficava ela de mim. Seus cabelos se misturavam com as nuvens doiradas pelo sol crepuscular. Trazia  um vestido laranja, colado ao corpo, seguro por suspensórios, blusa amarela com mangas até o punho, adornadas com pulseiras azuis  Não pareciam tecido. Talvez algum metal a refletir os últimos raios do sol poente. Derramou-se uma luz por toda  malhada. Espargia-se uma intensa fragrância de jasmim silvestre, a flor que eu mais gostava e porque chovia suas flores embranqueciam o mato, iãsemin que embriaga as noites do sertão. Ela ia-se afastando como se a puxassem por trás e para o alto. Eu corria. Não me pesava o corpo. Seus olhos, o meu guia, sorriam.  U’a música,  até então,  apenas um ruído, aumentou e escutei sons nunca dantes ouvistos. Mil chocalhos badalando na tarde. Não se via, mas vozes femininas se mesclavam numa orquestração indecifrável. Surgiam luzes e pariam cores e sons, circundando meu corpo, meus ouvidos. Não diziam chulas nem batuques. Nem tambores, nem pandeiros. Era um cantar de palavras. Indecifráveis. U’a música disforme das toadas do sertão. As vozes se misturavam e me vinham como um chamado. Sons como órgãos, violinos, alaúdes,  harpas e liras e cítaras. Às vezes parecia ouvir o doce toque do boré. Fiquei com medo e quis parar. Já não conseguia estancar, por mor de uma força me conduzindocontra  aquela moça. Ela meiga e mansamente se afastava.
 - Não tenhas medo, eu te protegerei, fecharei a boca da serpente, não deixarei que te mordam os bichos que rastejam,  te afastarei das onças e bichos selvagens, não serás tragado pelas águas, nem comido pelo fogo. Eu estarei sempre contigo -  Sua voz pairava sobre tudo. Era um canto, o mais belo. Já não mais sabia onde estava. Meus pés começaram a desprender-se do chão pedregoso. Gritei.
- Papai, mamãe, estão  me roubando.
Grito, no espaço, perdido. Sons, cores e luzes, como a me embalar.  Ela me sorria  e beijos  me enviava. Tanto espanto, por dentre as nuvens, no  carro se aproximando. O mesmo da feira,  obi,  não preto como antes. Sem fumo, nem bulha, deslizava  puxado por dois cavalos brancos. Ela convidou-me a entrar no carro,  tive ainda maior medo. Gritava, que me deixasse ir embora. Não queria ir com ela. Que gostava dela, mas tinha medo. Não sabia aonde me levava.
 - Vais comigo  a um lugar  lindo, sem secas, sem fome, sem assombrações,  nem jagunços.  Só paz, música, festa e cores.
- É o céu? - perguntei- eu ainda não morri. Me deixe ficar, não quero ir. Eu estou com medo.
- Melhor que o céu, lá se vive, sem precisar morrer. Você não está vendo?  Eu não estou morta. Lá não existe morte. Só vida.
Me fez tocar seu braço. Ele tocou seu braço. Cálido. A boca do forno da casa de farinha,  suave como as plumas dos pintainhos. Tinha medo e saudade dos de lá de casa. Com certeza,  já tinham sentido  minha falta e estavam me procurando. Ruindade minha, ir prum lugar tão bom, deixá-los sós na roça passando necessidades, como beber água  salobra da cacimba, porque não chovia, ou pisar  milho pra  cuscuz e comer com feijão.
- Eu quero voltar pra casa, dizia, embora já tivesse compreendido. Ela não me queria fazer mal algum. Quase como um desabafo, num gesto de impaciência, sua voz, seu corpo disse:
- Olha bem, naquele dia, senti  que gostavas de mim e vim te buscar. Agora vou te deixar,  não poderás viver entre nós, não estás pronto, ainda, um dia estarei de volta. Amanha-te, então, amando-me, a melhor maneira de te preparares e logo virei buscar-te.
Senti meu corpo. Desprendia-se daquele carro. Imagem, som, luzes e cores  iam-se afastando. Seu sorriso ia tomando conta de mim. Um sentimento de perda ia-se apoderando de mim. Eu ia descendo e me afastando dela. Adeus, adeus, até a volta,  como uma canção de ninar. Meus pés tocaram o chão. Tudo evaporou-se. Fiquei. Mudo, surdo e  quedo.  No lusco-fusco, ouvi. O balido de um cordeirinho, anhó. Após,  frente a mim, a ovelha, tanto procurada e o borreguinho,  buscando ávido o peito da mãe.
Toquei  ovelha e o marrãozinho rumo à casa.  A lua alumiava a boca da noite. Uma acauã gemeu seu canto e eu apressei o passo.
                     

(Publicado  em  A miragem Antologia Literária, ED. Art-Contemp, Salvador, 1992 e na Coletânea COISA SIMPLES, Edições AG São Paulo; All Print Editora,2010).
Ainda nos blogues:
http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br, com o pseudônimo Deus Carmo.

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