quinta-feira, 16 de agosto de 2018











                                                      
                                                       
E como não lhe davam pedrinhas para comer misturada à ração diária, as aves passaram a comer areia, pedaços de metal, vidro, ossos, pedaços de ladrilho e tudo que encontravam para substituir as pedras de que necessitavam para a trituração dos alimentos. Assim, estes objetos se quedavam na moela, pois não  eram digeridos pelo suco gástrico e às vezes chegavam a obstruir o intestino. As pobres  aves ficavam então tristes, penas ouriçadas, asas caídas, cambaleantes, sem fome, sem defecar ou com diarreia e depois morriam como gado que pela seca, comia pano, papel, papelão, borracha e plásticos. Iam ficando tristes, pesados, lentos, preguiçosos e caíam para não mais levantar. Morto, abria-se o bucho, incrível aonde leva  a fome. Com fome, também o homem faz coisas que ele próprio duvidaria. Como cães comem as próprias fezes, sedentos bebem a própria urina.  Nas noites de Paris, corrido da Feijoada, corria atrás de pratos pra lavar por comida. Enxotado por uns, acolhido por outros. Comer, inda levar para Jussiê,  envergonhado de Quixeramobim. Filho de padre e freira. Trígamo guloso. Aventureiro, irias morrer se fosses  a Florida de jangada, mesmo com rezas ao Nkisi Tempo, Viracocha, Anubis. Tu não atravessarias o Vale. Que sorte, quantos não morreram enterrados nos claustros. Olorum didê. Ficastes para contar.
Estou contando a história de Jussiê, com 18 anos,  analfabeto e aos trinta encontrado na Sorbonne, Universidade de Paris estudando letras e literatura francesa. Falava-me  de seus 11 irmãos, criados no Quixeramobim, terra dos quixarás, comendo jerimum, tocando todos, algum instrumento, que padre e freira revoltados proibiram de estudar.



quarta-feira, 1 de agosto de 2018

               












                                   
                                             
Era vinte de dezembro de mil novecentos e setenta e dois. Me vi  no Campo Grande, no meio de uma multidão. Sem razão aparente as pessoas começam a correr para o Corredor da Vitória. O que aconteceu, ninguém soube.
- Corre, corre, é a policia, gritavam.
Eu não tinha razões para correr, não fora o aparecimento repentino  de tanques, tratores e outros carros militares. Vinham destruindo tudo. Mas, quando de fato comecei a correr já se tinham  cercado tudo com arame farpado. Enormes redes de arame. Uma armadilha. Soldados de todas as fardas cercavam o resto. Eu vencia as cercas de arame, mas outras surgiam à minha frente, indefinidamente. Corri desorientado, muito e muito, como se estivesse no escuro. Muitos, muitos dias, e ao abrir os olhos estava no Bonfim, o domingo de Bonfim. Barracas tocavam músicas, no samba de roda, mulatas se sacudiam, na roda de capoeira Caiçara rodopiava o rabo de arraia para impedir a  cabeçada de Bom Cabelo. Como mágica, cercas de arame, soldados, bombas estourando, gaz chiando, gente correndo, mulheres gemendo, uma criança cai no tacho fervente de acaragé. Uma batalha como se fosse a final. Por que fazem guerra, os homens?
Quantos minutos, quantas horas as escaramuças? Coalhada ficou a Baixa do Bonfim. Corpos, queimados, mutilados, tecidos, roupas, pedaços de madeira,  fogões, geladeiras, garrafas, espetos, churraqueiras, pneus fumegando, ferros de engomar, rádios e radiolas, camas, mesas, cadeiras, arlequins, pierrôs e colombina saindo com o sorriso da dor.
Pouco a pouco, como caracóis saídos da concha, vinham chegando. E como formigas avarentas pegavam do butim o que podiam e já entre si tentavam vender o que traziam às costas, na cabeça, nas mãos. Acolá tentam arrancar o dente de ouro de um que jaz semi-morto. Outro foi tirar o relógio de um defunto que acordou e deu um tapona no lalau. Os soldados se misturaram à turba para saquear o que ainda tinha alguma serventia. Como o primeiro de abril de 1964. Corri da faculdade cercada de tanques de guerra, mas soldados me pararam e tomaram os cruzeiros guardados para pegar ônibus da liberdade que partia do Campo Grande. Bela maneira de combater a corrupção. Hoje, os togados tomaram a si o combate à corrupção, mas  se enchem de sinecuras com auxílio isto, auxilio aquilo, nepotismo e todas a benesses que o poder proporciona.