terça-feira, 14 de março de 2017

HYDRA








Estava tudo claro-escuro. Era um povoado de casas caiadas, esparsas, numa planície de mato ralo e arbustos retorcidos, de onde se via, ao longe, a imponente Hydra. Eu tinha sede e precisava  telefonar.  Um aldeão me deu de beber,  que bebi a contragosto, água barrenta e salobra. Não havia telefones na aldeia. Você pode encontrar água boa e telefones no topo da cidade. Muito e distante e alta estava, teria de andar muito, por íngremes ladeiras. Há tempos não exercitava minhas asas. Chegando ao topo de uma ladeira, fiquei indeciso. Não tinha certeza de que poderia voar.e um tope E foi com enorme esforço que, de um topo de ladeira, levantei vôo. Para Hydra, homem-pássaro. Levantar vôo de pequenas elevações exigia muita energia para manter a altitude e isto me cansava muito, por isso tive  que parar inúmeras vezes. E era outro sacrifício para levantar vôo novamente, porque tinha sempre de fazê-lo do cume de alguma ladeira. Sou como as pardelas de Cipango. Tenho de escalar uma árvore ou qualquer elevação para alçar vôo.
Que alivio quando comecei a distinguir os primeiros arranha-céus da cidade de Hydra. Seus tetos de vidros coloridos refletiam a luz mortiça do sol-poente.
Posei no primeiro teto que encontrei pela frente. Desci à rua. Entrei num bar. Tomei uns goles de um refresco verde vendido por um homem de cabelos também verdes. A sede não morreu por inteiro. Não quis, porém, beber outro trago. Precisava telefonar, ou melhor, tinha vontade de telefonar.
Indaguei das mulheres da cidade. Lindas diziam. Amáveis cochichavam um pouco temerosos, alguns. Adoráveis,  asseguravam, outros, mais convictos.
Andei, por entre ruas, becos e vielas, milhões d´olhos de um vago olhar aflito, cobrem-me o corpo,  assustados e curiosos, mas  pacíficas e simpáticas. Corri, de qualquer sorte era um intruso. Subi num murro e passei para outro mais alto, daí para um telhado de uma casa de onde  tomei vôo, sempre pousandoem prédios mais altos para retomar vôo. Bem  alto, já, vi um teto que era uma cuia. Que era u’a mesa. Que era uma agulha.
Abri os braços-asas na busca daquela que era a dona da cidade. Hydra.
Hydra. Mulher linda. Mulher rica. Mulher inteligente. Mulher-mulher.
E vi no mais alto dos prédios, um lindo terraço colorido e perfumado pelas flores de toda terra. Posei em seu tapete aveludado.
Hydra falava ao telefone. Hydra. Falava ao telefone.
Seus olhos verdes cor de fogo saíram de seu rosto e tocaram minha pele queimada. Seus cabelos voaram e taparam o sol.
O amarelo ficou negro. Eu apenas balbuciei: Eu ... Eu queria telefonar. - Sua presença era o mundo.
Seus braços se abriram. Looongos. Caiu o telefone que se partiu.
Suas pernas partiram,  enormes, para mim.
- Lindo, lindo homem, me  ama.
E vi sua língua em forquilha soltar pequenas gotas de um líquido que me atingiam o corpo, queimando-me a roupa e assando-me a pele. Quis tapar as narinas para não sentir o hálito fétido que exalava, mas pouco efeito fazia. Já estava todo empestiado de sua saliva.
Eu tentava voar e não mais podia. Maior era o esforço, mais perto estava ela de mim. De seus braços que esticavam. De suas cabeças, mil. De seus olhos coruscantes.
Me ama. Me ama.
E mostrava os seios  lindos. O corpo ondulante, qual uma serpente e com o fremir da dança do ventre.
Molhado estava. Queimado estava. Era uma ferida só. De sua saliva. De seus olhos.
E vi minhas asas caírem. Meus dedos. Meus braços. Minhas pernas. Meu corpo. E o nada..
Agora sou.
Sua voz. Seus olhos. Seu corpo. Seu cheiro. Sua beleza.
Eu sou a Hydra. Eu sou Hydra.




 (Publicado  na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança -   Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).




quinta-feira, 2 de março de 2017

A RONDA

                                                                                                                                        (1969)










Nós andávamos de uma rua para outra, entravamos aqui, acolá e sempre tínhamos que sair por que  nos bares não se podia permanecer sem beber. A  rua toda era uma capa espessa de gelo, onde nossos pés afundavam e se endureciam cada vez mais ao contacto da neve que ali se deixava ficar por mais de uma semana. Jussiê, coitado, talvez gemesse mais do que eu  e se lembrasse de sua meninice na catinga seca do sertão do Cariri.
O sertanejo é um nômade e está em toda parte. Todos  fugindo de alguma coisa. Mas de quê? Não sabíamos, nem eu, nem ele. Indignados mas resignados buscavam, como buscamos nós, vencer a própria sorte e talvez trazer de volta uma fortuna que não adquiriria em sua terra. O Nordestino sempre quer voltar. Secas, morte de companheiros de vadiação, profetas barbudos vociferando o nome de Deus, cangaceiros  bradando e imprecando em nome dos pobres e oprimidos, tudo os une e apesar da fuga silenciosa empreendida a cada ano de seca, formam onde se encontram uma comunidade com laços muito fortes.
Andávamos naquele deserto branco e quem sabe? Chorando a falta  de algo que se foi ou nunca existiu. Nossos sapatos molhados, nossas orelhas ressequidas, nossos lábios partidos pelo vento, nossos narizes pingotando, o corpo inteiro quem sabe? Nada  sentiria se estivéssemos encontrado o que sem saber procurávamos. Lutar é inútil, dizia, tudo é inútil, respondia, quase automático. Não há resposta para o nada. Andar sobre a lama da neve, se perguntando para onde ir. Alguém já compartilhara das nossas desditas? Não sabíamos. Com certeza já experimentamos a alegria de se dar, mas a quem? Talvez para ele,  fosse naquele dia  que ajudou a carregar  o caixão  da meiga Genoveva morta  por falta de médicos. Para mim, talvez tenha sido no dia em que chorei quando levaram Virgilina para se empregar em Salvador.
Andávamos. Sós. Corpos também se moviam sobre o gelo machucado pelos automóveis. Nos perguntávamos, por que aquela gente não nos olhava, não via apreensões e tormentos em nossas faces curtidas pelo tropical?
Às vezes, diante do espelho na mansarda de um sétimo andar da Rue  Grennelle, olhávamos  nossa cara e víamos aparecer os primeiros sinais  da desilusão.  E aquele gelo sob nossos pés se derretendo, empretecido pelas rodas dos automóveis, aumentava nossa angústia e crescia a solidão. Uma infindável nostalgia tomava conta de nós, fazendo-nos odiar aquele mundo tão rico e tão mesquinho.  Ainda assim, eu queria ficar, ele queria ficar. Mostrar ao francês de que é capaz um baiano e um cearense no mundo. Mostrar que o sertanejo é, por cima de tudo, um forte, como bem disse Euclides da Cunha. Mostrar que um prato de comida se conquista até com a morte e não se curvar diante da insolência e soberbia do europeu. Gritar a todos os cantos sua indignação perante tão desumanas pessoas, que saqueando o mundo se encheram  de bens e riqueza, deixando atrás de si um rio de sangue e miséria. Ficar. Queríamos ficar, mesmo que a multidão não nos quisesse olhar, ou que todos os proprietários nos expulsassem, como  o do bar que nos expulsou, por não termos dinheiro para beber. Dehors étrangers de la merde, ouvimos, contentes, todavia,  porque nos mostramos mais fortes do que ele, instalado atrás do balcão, protegido pelos metais, que sabíamos terem roubado das colônias. Furioso ficou, quando a todos os pulmões, sorridentes, bradamos: Ladrões da America, Ladrões da Asia, Ladrões da Africa. Ninguém resiste a um protesto não violento. O cara fica possesso. E isto é uma vitória. Estrangeiros, éramos estrangeiros.   É direito do homem à vida e logo à migração. Fronteiras só  para delimitar países, não para impedir o direito de escolha onde viver. Discriminar por  nacionalidade ou nascimento, mesmo que matar. O homem, um só. Terra de todos. Não se tem  direito de impedir alguém de escolher onde deve morar, sobreviver.  Esquecem, os estrangeiros fizeram a fama de Paris.
Voltamos ao nosso quarto na Rue Grenelle e tivemos mais um dia de frio, sem comida, quase, e sem trabalho.  Eu um artista frustrado. Ele um político atormentado. Onde estará agora quem primeiro sequestrou um avião na Europa?


     Continuação in NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

(Publicado  na Coletânea LITANIA – O Grito da Esperança -   Contemp Editora Ltda, 1989, Salvador-Ba).