Nós
andávamos de uma rua para outra, entravamos aqui, acolá e sempre tínhamos que
sair por que nos bares não se podia
permanecer sem beber. A rua toda era uma
capa espessa de gelo, onde nossos pés afundavam e se endureciam cada vez mais
ao contacto da neve que ali se deixava ficar por mais de uma semana. Jussiê,
coitado, talvez gemesse mais do que eu e
se lembrasse de sua meninice na catinga seca do sertão do Cariri.
O
sertanejo é um nômade e está em toda parte. Todos fugindo de alguma coisa. Mas de quê? Não
sabíamos, nem eu, nem ele. Indignados mas resignados buscavam, como buscamos
nós, vencer a própria sorte e talvez trazer de volta uma fortuna que não
adquiriria em sua terra. O Nordestino sempre quer voltar. Secas, morte de
companheiros de vadiação, profetas barbudos vociferando o nome de Deus,
cangaceiros bradando e imprecando em
nome dos pobres e oprimidos, tudo os une e apesar da fuga silenciosa
empreendida a cada ano de seca, formam onde se encontram uma comunidade com
laços muito fortes.
Andávamos
naquele deserto branco e quem sabe? Chorando a falta de algo que se foi ou nunca existiu. Nossos
sapatos molhados, nossas orelhas ressequidas, nossos lábios partidos pelo
vento, nossos narizes pingotando, o corpo inteiro quem sabe? Nada sentiria se estivéssemos encontrado o que sem
saber procurávamos. Lutar é inútil, dizia, tudo é inútil, respondia, quase
automático. Não há resposta para o nada. Andar sobre a lama da neve, se
perguntando para onde ir. Alguém já compartilhara das nossas desditas? Não
sabíamos. Com certeza já experimentamos a alegria de se dar, mas a quem? Talvez
para ele, fosse naquele dia que ajudou a carregar o caixão
da meiga Genoveva morta por falta
de médicos. Para mim, talvez tenha sido no dia em que chorei quando levaram
Virgilina para se empregar em Salvador.
Andávamos.
Sós. Corpos também se moviam sobre o gelo machucado pelos automóveis. Nos
perguntávamos, por que aquela gente não nos olhava, não via apreensões e
tormentos em nossas faces curtidas pelo tropical?
Às
vezes, diante do espelho na mansarda de um sétimo andar da Rue Grennelle, olhávamos nossa cara e víamos aparecer os primeiros
sinais da desilusão. E aquele gelo sob nossos pés se derretendo,
empretecido pelas rodas dos automóveis, aumentava nossa angústia e crescia a
solidão. Uma infindável nostalgia tomava conta de nós, fazendo-nos odiar aquele
mundo tão rico e tão mesquinho. Ainda
assim, eu queria ficar, ele queria ficar. Mostrar ao francês de que é capaz um
baiano e um cearense no mundo. Mostrar que o sertanejo é, por cima de tudo, um
forte, como bem disse Euclides da Cunha. Mostrar que um prato de comida se
conquista até com a morte e não se curvar diante da insolência e soberbia do
europeu. Gritar a todos os cantos sua indignação perante tão desumanas pessoas,
que saqueando o mundo se encheram de
bens e riqueza, deixando atrás de si um rio de sangue e miséria. Ficar.
Queríamos ficar, mesmo que a multidão não nos quisesse olhar, ou que todos os
proprietários nos expulsassem, como o do
bar que nos expulsou, por não termos dinheiro para beber. Dehors étrangers de la merde, ouvimos, contentes, todavia, porque nos mostramos mais fortes do que ele,
instalado atrás do balcão, protegido pelos metais, que sabíamos terem roubado
das colônias. Furioso ficou, quando a todos os pulmões, sorridentes, bradamos: Ladrões da America, Ladrões da Asia, Ladrões
da Africa. Ninguém resiste a um protesto não violento. O cara fica
possesso. E isto é uma vitória. Estrangeiros, éramos estrangeiros. É direito do homem à vida e logo à migração.
Fronteiras só para delimitar países, não
para impedir o direito de escolha onde viver. Discriminar por nacionalidade ou nascimento, mesmo que matar.
O homem, um só. Terra de todos. Não se tem
direito de impedir alguém de escolher onde deve morar, sobreviver. Esquecem, os estrangeiros fizeram a fama de
Paris.
Voltamos
ao nosso quarto na Rue Grenelle e tivemos mais um dia de frio, sem comida,
quase, e sem trabalho. Eu um artista
frustrado. Ele um político atormentado. Onde estará agora quem primeiro
sequestrou um avião na Europa?
Continuação in NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
(Publicado na Coletânea LITANIA –
O Grito da Esperança - Contemp Editora
Ltda, 1989, Salvador-Ba).
adorei, Deus.
ResponderExcluirvou ler os outros para saber se adoro mais, Deus.
ResponderExcluirObrigado. Deve-me uma crítica.
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