Desço rio abaixo, serpenteando docemente por
meandros como folhas caídas n´água. Os acordes de uma melodia, flauta e
clarinetas revolteiam, enquanto as cordas pingoteiam marcando o compasso até a
chegada dos violoncelos. De onde vêm? Ouço-os
dentro mim, que se repetem e se avolumam como ondas marinhas. Nuvens
embaladas pelo vento dançam sobre mim ao ritmo da melodia. Não há como guardar
aqueles acordes. Meu corpo em rodopio também dança. Braços abertos como a
reger, sem batuta, uma orquestra
invisível. Repito, cada frase, repito. Sei que não posso me esquecer, escrever
me leva à eternidade. Nenhum sentimento de medo. Sob meu corpo deslizam peixes
e outros seres d´água. Por alguns momentos aqueles sons se misturam aos acordes
da Chacona de Bach transposta para violão tocada por um virtuose qualquer,
Segóvia, talvez. Tento encontrar, no violão, as cifras adequadas. Um lá menor,
(am), passa ao dó maior, (c), em seguida o ré menor (dm), volta ao lá menor
(am), retorna ao ré (dm) e depois ao lá menor (am). Repito, repito ainda, não
esquecer. No pentagrama creio que ficará assim: Clave de sol na segunda linha,
um bequadro na quinta, compasso 6/8, na terceira linha, um si colcheia, trava,
mi semínima, fá colcheia, sol semínima, lá colcheia, barra. Como é difícil
escrever música. Ouço a melodia, ao longo do rio:
Quem te disse que eu escrevi isto? Transcrição, paga, eu paguei. Não dizem que
Verdi não sabia escrever música?
Cada
meandro moldava imagens, dúzias, centenas de casas torneando o
rio de minha terra. Abro ouvido e olhos, ninfas nadam alegremente em suas
águas. A corça lépida, protegida por Diana, bebe d´água, sem medo dos caçadores
que se divertem com suas trompas. Aqui um baile, alegre, ridente, um casal, seus convidados e parentes. D´um lado e doutro
fachadas coloridas, as mais belas. Passo por baixo da ponte Carlos, de tantos segredos
sepultados. Os prédios da cidade velha, a igreja de Nossa Senhora de Tyn, parte
do Castelo com suas torres, a velha
catedral gótica de S. Vito, padroeiro
dos Atores, dos cães (até cão tem padroeiro?), comediantes (O homem precisa
ri), dançarinos, epilépticos e da tempestade (É padroeiro e tanto, até da tempestade),
suas gárgulas e vitrais esplendorosos e medonhos. Acordo de meu sono que não foi eterno, nem
teve berço esplêndido. À catedral,
avanço embalado pelo suave som de cordas e metais. Corro em seu rumo, mas parece
que a invisível orquestra ia sendo conduzida pra longe e arriba por ligeiros
corcéis voadores, tal Pégaso conduziu Perseu e, os sons ficam cada vez mais distantes
e inaudíveis. Não quero perder aquela melodia. Vestido num terno creme, uma
gravata borboleta, cabelo desgrenhado, de barba irregular com uma terrina de
creme de leite na mão esquerda, uma batuta e uma partitura na direita surge em minha frente um maestro. Não parece
irado, meio contrariado, apenas. Fala-me em língua que não conheço. jde psát
vaše píseň. E cantarolou, regendo, entre zangado e divertido, enquanto lhe
voava a partitura, Bedrich Smetana, toda a melodia que um dia pensei ser minha. A
vaidade humana torna o homem ladrão de sua própria consciência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário