Subia
a Rua Oito de Dezembro, vindo da Rua Santa Rita de São Salvador da Bahia de
Todos os Santos. À esquerda, na altura da casa de Dr. Hermógenes, ou melhor, em
frente à casa de Frank, existia uma frondosa gameleira branca na qual eu comecei a escalar. Logo percebi que a cada passo acima, a gameleira se afundava. Insisti, mas tanto subia, tanto
descia. Seu tronco já afundara pela metade.
Estava
nesta lida quando surge um rapaz, bigode fino, um cabo-verde, cabelos negros
como a asa da graúna, como dizia Alencar. Eu estava profanando a árvore, uma
gameleira branca, um malembá sagrado, um irocô. Estava apenas escalando-a pra
poder voar. Curiosos se achegaram, iniciando uma discussão sobre a sacralidade
da árvore e minha capacidade de voar. Eu mesmo, por medo da multidão, passei a
defender a árvore e sua sacralidade, enquanto uns me chamavam de impostor, de
palhaço, um babaca, querendo aparecer. Só então, vi um ojá branco amarrado ao
malembá, formando um laço e restos de
omalá, inhame, um pernil de carneiro, patas de cágado, ajabó,
caruru, feijão fradinho,
deburu, acaçá, ebô e outras iguarias em alguidares
espalhados pelo chão. Eró
Zaratembo.
O
clima estava ficando tenso. Surge um senhor, de aspecto ameaçador e conciliador, ao mesmo tempo,
trazia .na mão um ixã. Era o Tatá de Inquice, pai do rapaz que falava comigo.
Então percebi ser ali um terreiro e aquela árvore, um irocô. Moreno magro,
bigodinho brilhante e cabelos
encaracolados, trazia um sorriso nos
seus olhos verdes. No andar, no trajar, um certo ar de fidalguia e elegância. Calças de seda
branca e casaco de seda verde, ornado com rendas amarelas nas bordas. Fez sinal
para que nos calássemos, com tanta magia no olhar que a contenda teve fim. Disse não estar ofendido
pelo meu ato. Não fizera por mal. Piores, gente da casa, profanadores dos ritos sagrados. Agradeci por
aquelas palavras de sabedoria e pedi
permissão para mostrar a todos o que pretendia fazer, assentiu o doté.
Mas acabei deixando de lado o irocô e subi
no muro do Ilê de onde vi o
despenhadeiro, antepondo-se ao palacete
Henriqueta Catarino. Abri meus braços, nem preciso dizer, voar sempre me trouxe
de pavor, medo de não voar e passar decepção. Como saltar de paraquedas que não
se abre. Lancei-me, entretanto, no espaço,
braços abertos no ar. Sacudi-os arriba, abaixo. Comecei alçar vôo.
Puxava o ar como se estivesse nadando.
Os braços-asas. Viu a cajazeira, logo encostado ao muro do quintal do Dr.
Hermógenes, a quinta do palacete, onde tantas vezes fora roubar frutas,
incentivado por Clarisse, a babá dos meninos. Vi, em seguida, o cemitério, não o dos ingleses, mas outro, a
seu lado. Passei a planar tranquilamente
sobre árvores, campas e torres. Pousei, afinal sobre uma sepultura. Uma velha e
uma jovem rezavam entre flores e velas. Assustaram-se com minha chegada.
Abraçaram-se gritando uma pela outra. Mãe e filha. Nem adiantou pedir-lhes
calma. Mais ansiosas ficaram. Profanador, gritaram. Lá de cima,
palmas pelo meu feito. Elas não entenderam. Imprecavam contra mim e
contra eles. A jovem, passou la mão num jarro e o atiçou contra
mim. Pedras, paus. Pernas, pra que te quero? Pisando quase nos meus cascos xingavam, gritavam. Saía fogo de suas bocas,
ou era água que queimava. Trepei num túmulo mais alto. Tentei alçar vôo. Não
consegui. Quem me aplaudia lá de cima,
passou a me vaiar. Alguns desceram a me perseguir no cemitério. Corria e corria
e corria. Minhas calças caíram. Eu não tinha mais minhas calças. Com as mãos,
escondia as vergonhas. Isto me impedia de correr mais depressa. Pega o Bruxo. Pega o necrófilo. Ele voa como bruxa. Ele voa sem bassoura.
Lá em cima cresceu o movimento de gente. Vociferavam contra mim. Podia ver de longe, Ruy Barbosa com seu bigode branco, lunetas de aro fino, e gravata borboleta,
cerrando os punhos, gritando. Réprobo, Íncubo.
Arimã. Anhangá do inferno. Sujeitinho pernóstico, até pra xingar vem ele
com este linguajar tirado a clássico. Também pudera, um homem fora do seu
tempo. Conhecida tudo do passado, menos do presente. De outro lado, cabelos
revoltos, barba apocalíptica, atroava Glauber Rocha, como se estivesse dirigindo uma cena de seus
filmes. Corre porra. Abre os braços. Sobe
naquela torre. Voa porra. Voa. Gritos de um louco que me deixavam varrido. Eu não sabia bem o que fazer. Castro Alves
vendo aquela multidão, cofiou o bigode,
passou a mão pela vasta cabeleira,
começou a esganiçar: “E eu sei que
vou morrer, dentro em meu peito um mal
terrível me devora a vida. E morro ó Deus! na aurora da existência. Adeus,
vida! adeus glória! Amor! Anelos!”. A turba gozava meu infortúnio, como
gozaram o incêndio do Mercado Modelo. Torres mouriscas se derretendo sob as
línguas do fogo, tal como ardiam as pessoas sob o fogo da Santa Inquisição. (E
como era santa). Olhava ao redor. Uma
árvore, precisava subir, não havia,
porque palmeiras, cajazeiras e ciprestes
eram difíceis de se escalar. Na
azáfama de me livrar daquela agonia, entrei na igreja daquele santo campo, onde
o padre Antonio Vieira, o paiaçu dos
Tupinambás, dizia, ante um féretro sobre a essa, uma missa perante uma
assistência chorosa e triste. Alvoroço, com minha presença. Um salteador,
pensaram. Calma gente, calma. Me ajoelhei num banco, tentando fazer uma oração,
tentando só, porque nenhuma passava das primeiras frases.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
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