Passa o
gancho, disse Neco Preto. Vi e
ouvi. Pegou da rabeca e foi derreando-se sobre o tapete verde do bilhar. Seu
corpo crescia sobre a sinuca e o silêncio invadiu o ar daquela tarde. João de
Maninho, dono do bar, (um fuzuê podia acontecer) lançou um olhar de gato assustado sobre o
preto Neco. É tudo ou nada, disse este, num disfarce. Ariston sorria pelos cantos. O de fora desconfiava. Apruma o
taco, Neco danado. Dizia como querendo convencer ao meteco de que era um pixote.
Um pouco à direita. Não, demais, esquerda. Atrás,um pouquito. Afasta-se,
cismando, como indeciso da jogada. Manha de quem quer enganar os incautos. Já
perdera mais de cinco e esta era a negra, valendo tudo o que tinha no bolso, o
outro que depositara na caçapa, o que
ganhara e o que trouxera. Cantou. Bola sete. Limava, limava a bola. Suave saiu
bola branca rolando sobre o tapete verde. Ouvia-se o zunir d´insetos, como
num coro, em contraponto. Nem o assum-preto, na gaiola, cantou. Bate a branca, a bola preta, devagar caminha,
mansa, serena, baqueando-se em boca aberta, sem dó, sem compaixão do fulano
forasteiro, revoltado pela enganação. Quem quer ganhar não quer perder, mas
quem há de contestar o nego Neco? Assim
fazia, com quem aparecia com ares de bom jogador de sinuca. Roubar, não
era roubo. Ensaiava fífias, repiques e furadas no inicio, astúcia: ganhar o dinheirim do caba que chegava bufando
sabedoria e fidúncia na sua roupa engomada. De quem arrelia fazia, arreliado
ficava. Sinuca, quase distração única daquela gente, sacudida por secas,
valentões e borrascas que amedrontavam a todos, obrigados a cobrir espelhos e
metais, por medo de coriscos e raios infernais. Almas crentes e simples
dominadas por lendas brancas, negras e indígenas. Caiporas castigando caçadores desobedientes
das regras da natureza; o preto velho,
bom pra uns e maligno paroutros. Neco Preto era a arrelia do sertão. Engomado
no seu fato de linho branco contrastando com sua pele de azeviche, podia-se
ver, por entre as calças, o cabo do punhal incrustado de oiro e prata. Nem a valentia de Duardo da Pedra Bonita o amedrontava.
Mas ninguém, nunca num viu o preto Neco numa briga de verdade. Apenas
respeitavam. O nego tinha mandingas africanas aprendidas dos pretos velhos do
sertão. Sabia jogar cangapé como ninguém e derrubava qualquer um que se fizesse
de besta. Medo dos negros, advindo, talvez, com divulgação da revolta
dos Nagô-Minas, adeptos do Alcorão, a Revolta dos Malês, propiciando o desenvolvimento de um latente racismo e
discriminação contra toda sorte de cafre. Negro era inimigo. Herança maldita,
vergonha de ser negro, mesmo quando deixou
de ser coisa, com a abolição. E
apesar de se tratá-los de maneira
carinhosa, por medo ou respeito,
sentia-se no ar certo ressentimento de parte a parte. Todo negro sabia lutar
cangapé, tocar o berra-boi, de som exótico, e era senhor de mandingas e
mistérios d´África capaz de transformar um cristão num sapo ou numa pedra. Em
Capela, n´ Aroeira, negro morava em pequenas comunidades, quase sempre em
terrenos pouco férteis que o branco não se apropriara. Vendiam o dia no macaco,
e poucos tinham chegado à condição de proprietário. Abolição formal, mais prejuízo
que beneficio: Deixou o negro ao deus dará sem nem mesmo ter pronde ir. Neco
não tinha profissão definida, mas andava sempre com dinheiro e bem vestido, e, à
parte as trapaças no jogo, era de uma honestidade à toda prova. Quem nunca o
viu, preto no chapéu baeta, engomado no linho branco? Mais de jogo vivia que de
trabalho, só com a chuva sumia: mandioca, milho, feijão, mamona, fumo em manoca, de suas mãos. O povo de Baio
padeiro, de Monte Alegre, negros corridos da morfeia, eram mestres charuteiros.
Dobra fumo, enrola fumo, arte nas mãos. Do lado da Rua Nova, Baio fazia pão. Marcados,
ritmados murros, a massa, o cocho, o baticum até noitão. Fazer a liga, esticar
o bolo e cortar o pão nosso de cada dia, (só na oração), jogado ao forno em brasa ardente. Luxo na mesa
do sertão. Pisara muito milho, peneirou xerém, quirera do angu. Cuscuz, mingau e mungunzá
eram nossa tamina, como as que se davam
aos escravos. Os pernambucanos moíam o milho na mó. Ver cair o milho quebrado
pelas beiradas da pedra era uma festa, como os metais da nona em Dvorak. Ver
isto, não é sonhar, é ser iniciado. Mistérios da vida. Mestre não é o lar, nem a escola, é a própria vida transbordando a cada
momento, que embora pareça obedecer a uma cronologia deixa de o ser, na medida em que sua rememoração
ressurge, basta qualquer detalhe, uma fagulha qualquer e lá
está inteira a cena vivida em datas imemoriais. O passado é o presente que é
passado que é futuro. Prova disto tive e mais de uma. Anos se passaram quando
me apareceu um cliente. Havia-se
aposentado e levara deste jubilamento um bom dinheiro. Largara a mulher e
arranjou uma amante. Com o dinheiro da aposentadoria construiu uma casa em terreno
desta mulher, a qual, logo se vendo dentro dela, expulsou-o de casa e ficou de
posse do bem. Interrogado um dia sobre um assunto do qual nem me recordo mais,
ele lançou um olhar e um sorriso que me fez voltar mais de cinqüenta anos, ao
esplendor da minha juventude. Repentina e claramente vi Renato em sua
singela casa, espremida entre os
casarões senhoriais da Barra Avenida, os dias na Escola Santa Rita, no
Chame-Chame, com seu irmão Reginaldo. Ao
largar da escola passeávamos pelas chácaras, onde hoje é Avenida Centenário,
chupávamos doces mangas roubadas e ofertadas pelos chacareiros e depois de
esquadrinhar todos aqueles lugares à sombra de mangueiras, tamarineiros,
araçazeiros, abacateiros, jaqueiras e bananeiras subíamos a ladeira. Avenida
Princesa Leopoldina e na esquina do Hospital Português e tomávamos a Princesa
Isabel até sua casa. Quase que não tínhamos mais fome de tanto comer frutas
nesta caminhada. A divisão do tempo, presente, passado e futuro é artificial,
atende apenas a nossa incapacidade de perceber o todo como eternidade. Bento
Espinosa não disse que é impossível atribuir tempo a Deus? Que no momento em
que lhe atribuíssemos uma seqüencia de passado, presente e futuro estaríamos
reconhecendo sua finitude o que seria impossível em se tratando de Deus? Este
eterno revolver, esta constante mudança, como, observou Heráclito, acaba por ser
o próprio Deus. Deus não seria o
criador, mas a própria criação, a eterna mudança, em contraposição ao
pensamento de Parmênides que via no passado, no estático o próprio ser. Não se
pode obscurecer o principio da dinâmica porque ela é palpável, observável,
sentida. Se me lembro de Neco Preto vejo todas suas peripécias, capaz até de ouvir sua voz é porque dentro de
mim, como dentro de cada um de nós, há um deus que não queremos reconhecer, mas
que existe, existe. Está presentepassadofuturo, presenpassafutu, prepasfu.
Sonhos de
menino embalado por cantigas de roda na lua bonita, por chulas e
batuques dos Santos Reis, São Pedro e São
João. Cada vaqueiro um herói, amansador de burro bravo, carregador de caminhão,
cantador de cantoria, violeiro do sertão, homem valente na enxada, foice,
machado, facão. Lembranças, cicatrizes ficam n´alma e corpo,
passado, presente, futuro.
Doce,
amargo, azedo pode ser, um sorvete, ou queimar como flama. O da Primavera, (lá no Farol da
Barra), queimou su´alma. O bom é um
eterno inocente, montaria dos sabidos e perversos, escada dos gananciosos.
Um
dia, lendo as confissões de Jean-Jacques Rousseau, teve a luz do que lhe acontecera
mais vinte anos antes. Menino, saiu com a patroa, comprar sorvete. Morava com uma família tradicional e abastada
de Salvador da Bahia. Ele, deputado estadual,
ia receber um deputado federal do Partido Republicano. Levava D. Aurea
Maria, uma nota de vinte cruzeiros. Desce
do carro com um vasilhame do sorvete, o
menino fica, volta ela sem ele.
Estranhou não ter comprado o sorvete. Por que não comprou o sorvete, D. Áurea?
Inocente pergunta. Não,
não quero mais comprar sorvete. Fria resposta.
Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.
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